Elementos – Uma faísca de criatividade desperdiçada

Bom, qualquer filme que seja lançado com o selo Pixar vai lidar com as comparações que o histórico quase impecável desse grupo de obras carrega, afinal animações como Toy Story (1995), Procurando o Nemo (Finding Nemo, 2003) e WALL·E (2008)  são lembradas e ovacionadas até hoje. Assim, as expectativas para a estreia de Elementos (Elemental, 2023) não poderia ser outra senão altíssimas e, de certa forma, perversas com o nível de qualidade técnica da animação e do roteiro pois, além de produzir longas marcantes por seus universos únicos, há um senso comum de que filmes vindos do Estúdio Pixar são tão avassaladores que muitas vezes fazem seu público cair em lágrimas. E agora, o que fazer com tanta expectativa?

Em Elementos, acompanhamos uma cidade fictícia em que a água, a terra, o fogo e o ar têm suas próprias vivências, culturas e dinâmicas com o espaço onde vivem, sejam essas dinâmicas físicas ou conceituais. No entanto, mesmo com a diversidade impulsionada por povos tão distintos, o cenário que nos é apresentado durante toda a narrativa é de exclusão e falta de acessibilidade, e até segurança, para os elementos do fogo. É em um ambiente assim, na verdade até pior, que Brasa e Fagulha Luz, pais da protagonista, chegam na cidade das oportunidades buscando um novo lar e a possibilidade de uma melhor criação para Faísca, que ainda está crepitando na barriga de sua mãe. Aos poucos, Brasa e Fagulha não só constroem um novo futuro para a filha, como também uma loja de conveniência que se torna o centro de uma nova comunidade de elementos do fogo no subúrbio da cidade.

Já no começo da vida adulta, Faísca se vê queimando de estresse com o grande fardo de herdar a loja de conveniência da família e suas tradições, porém, mesmo com seu corpo denunciando que esse não é o seu real desejo, a filha única da família insiste em seguir pelo caminho de sacrificar suas próprias vontades. Com um plano de fundo tão potente, a história de Faísca passa por momentos de autodescoberta, de si e de seu povo, resistência perante as dificuldades que sua comunidade passa na Cidade dos Elementos e pelo romance. Aqui há uma encruzilhada de ramificação que o roteiro pode seguir e, a contragosto, o roteiro opta por dar uma maior luz para a comédia romântica, o que limita, e muito, todo o poder discursivo presente na trama.

Em linhas gerais, o romance entre Leah Lewis, atriz de voz de Faísca, e Mamoudou Athie, ator que dá vida ao emotivo Gota, não afunda a aventura de amadurecimento intimista de sua protagonista, visto que, graças também ao roteiro, há momentos divertidos e tocantes aproveitados pela  dinâmica de “opostos se atraem”. Faísca é assertiva, heroica e inocente, o que cria momentos admiráveis com Gota, que é doce, compassivo e ingênuo. Ambos, à sua maneira, se entregam livremente para um amor impossível por romper pactos sociais, culturais e até mesmo as próprias leis da física. Mesmo que não traga nada de inovador, é encantador poder acompanhar uma comédia romântica com uma roupagem que foge tanto da curva por fazer parte de um mundo fantástico, mas que carrega problemáticas tão reais que são capazes de conectar qualquer pessoa que já viveu, ou quer viver, um amor singelo como seus protagonistas.

Seguindo nessa linha, é impossível não concordar que o ponto mais alto do filme é a sua animação e toda a caracterização de mundo e de personagens que foi conquistada com muito estudo, tempo e dedicação, já que, em resumo, essa história vem sendo trabalhada desde meados de 2015. Além do avanço nítido dos materiais de trabalho e da variedade de designs que envolve a cidade repleta de vida onde se passa a história, também houve inspirações claras e importantes para o desenvolvimento da narrativa principal, tendo inclusive grafias e dialetos inspiradas em idiomas reais de parte do continente asiático para o povo do fogo. Com tamanha riqueza de detalhes, mesmo com uma ambiente tão inimaginável, é fácil entender a preocupação, e raiva, presente na relação de elementos do fogo e da água, pois os imigrantes de fogo só são  afetados diretamente por elementos de água, como também estão tendo sua história, cultura e lares ameaçados pela negligência daqueles que detém o poder político e geográfico soberano.

Seguindo para os pontos negativos, é frustrante que uma obra com tanto potencial narrativo e técnico escolha se desdobrar em um romance que certamente não seria capaz de sustentar conflitos interessantes por si só. O problema não é a afetividade que Faísca e Gota têm entre si, já que não chega a ser um desenvolvimento ruim, mas sim a quantidade de tempo que esse relacionamento ocupa dentro dos dramas mais palpáveis da narrativa e, definitivamente o ponto mais baixo, por ofuscar tanto a trajetória da sua própria protagonista. Talvez a experiência mais frustrante ao longo desse filme seja acompanhar uma problemática de dimensão catastrófica sendo “esquecida” por Faísca em um momento tão crucial de seu desenvolvimento de personagem. “E daí que toda a minha comunidade pode sofrer? Eu estou amando”.

Digo que talvez seja a experiência mais frustrante porque outra problemática que luta com unhas e dentes por esse título é a forma como tudo foge das mão de Faíscas em momentos ímpares de seus conflitos. A filha da família Luz é aos poucos apagada para receber suas respostas, resoluções e até seu próprio sonho de mão beijada por outras pessoas dentro de sua história, o que é ainda mais amargo quando se percebe que parte de seus problemas são iniciados ou encerrados por seu par romântico e pelo universo que o pertence. É engraçado pensar na falta de autonomia que Faíscas demonstra tanto dentro do relacionamento com Gota, quanto dentro do cenário de hierarquia e regras de universo no lugar onde vive. A garota em chamas está longe de ser uma personagem fraca ou incapaz mas, por algum motivo, suas capacidades e personalidade são reduzidas quando convém para a narrativa de seu romance.

No fim, Elementos está muito longe de ser um filme ruim, mas com certeza é um ponto de decepção dentre as obras do Estúdio Pixar, tanto pela grande expectativa que pairou em sua estreia, quanto pelo desperdício de seu próprio potencial narrativo. Durante a produção, vários passos arriscados foram dados e a maior parte deles se tornaram triunfos para a técnica de animação e construção de universo, definindo o visual mais singular dentre seus irmãos de estúdio. No entanto, seu passo mais falho dentro do roteiro foi, no máximo, mediano em honrar o esplendor conquistado por anos de pesquisa e avanços tecnológicos. No Oscar, Elementos chega tímido por não ser um favorito nem do público nem da crítica, mas mantendo a sua postura por saber de suas conquistas técnicas, além do histórico de filmes da Disney e da Pixar que já ganharam a estatueta de ouro.


Mauro Salu

Estudante de Cinema e Audiovisual com amor infinito em mundos fictícios e suas ramificações e na arquitetura da psiquê de personagens odiados (tipo a Abby de The Last of Us). Sonha em viver em uma realidade em que o nosso país vai investir pesado nos curtas e longas de animação para que haja uma diversidade de técnicas, gêneros e narrativas que só o Brasil é capaz de ter. Sempre disposto a falar por horas e horas sobre a qualidade duvidosa de franquias longas, desde Pânico até Raízes do Sertão.


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