Para 2024 a Academia investiu em uma curadoria de curtas-metragens de animações digitais com várias experimentações interessantes – seja em cores, formatos ou ainda texturas – onde a temática principal foi a memória, além é claro de não ter nenhuma história feliz. Porém, sem nenhuma animação em stopmotion e as animações 3D usam a técnica do 3D misturado ao 2D que tem se popularizado nos últimos anos, senti falta de mais ousadia entre os selecionados.
Não temos nenhum filme particularmente difícil de entender ou que se distancie muito dos outros e mais uma vez temos menos acesso aos curtas e nenhum curta da Disney ou da Pixar entrou na competição. Ironicamente no fim, o filme vencedor da categoria foi o menos ambicioso entre os cinco, em todos os sentidos. Roteiro, criatividade, sofisticação…
Para quem quiser conferir também para além do texto, falamos bastante sobre estes curtas em nossa live de Esquenta Oscar 2024 focada nas animações indicadas.
Paquiderme
(Pachyderme, 2022)
Filme francês, dirigido por Stéphanie Clément com roteiro de Marc Rius, conta história de Louise, uma mulher que revisita memórias de sua infância, de quando passava os verões na casa dos avós.
A princípio o curta, com direção de arte que lembra livros infantis, apresenta seu ar bucólico e delicado, parecendo uma fofa história sobre lembrar-se da infância e de dias agradáveis na casa dos avós, mas aos poucos, com uma linguagem visual poética e uma narração interpretativa, vai se revelando um peso que a pequena Louise carrega. Uma angústia que a persegue rangendo as tábuas da velha casa e que não vai embora por mais que sua avó diga a ela que apenas vá dormir, porque o que gera a angústia acontece enquanto ela está acordada.
É um pouco difícil perceber do que a história trata, mas com um pouco de atenção é possível entender que existe algum tipo de abuso pela parte do avô, mas nos momentos em que isso aconteceria, nada é mostrado. Justamente porque as memórias estão inalcançáveis de algum modo, pois ela dissociava, se escondia em si mesma nesses momentos, se isolando agora internamente, além do isolamento externo de estar longe de tudo e todos além de um paralelo com os silenciosos abusos.
As representações visuais para como a personagem se esconde em si, mostra seu silencioso sofrimento e representa sua infância roubada são muito bonitos e prendem a atenção. Mesmo não sendo um grande destaque entre os indicados, é um belo filme com uma linguagem muito própria.
Ninety-Five Senses
(2022)
Filme estadunidense, escrito por Chris Bowman e Hubbel Palmer, dirigido por Jerusha Hess e Jared Hess e protagonizado por Tim Blake Nelson. Conta a história de um idoso que reflete sobre os cinco sentidos e suas lembranças, enquanto ainda pode senti-los e lembra-las, já que ele está no corredor da morte, prestes a ser executado.
A história surgiu após a equipe conversar com diversos detentos no corredor da morte e se deparar não com vários homens maus, mas com homens muito humanos que tiveram um período ruim que os colocou ali. Por isso alguns dos temas principais acabam sendo esperança, privação e perdão.
Cada segmento de cada sentido foi feito por animadores diferentes, inclusive o animador do segmento que mostra o narrador no presente é um brasileiro chamado Daniel Bruson, que fez todo o seu trabalho a mão. Todos perfeitamente unidos por uma poderosa trilha sonora capaz de passear pelos diversos estilos, sensações e níveis de realismo que o curta apresenta.
A forma como a história é conduzida, faz nos apegar ao protagonista e às suas belas lembranças e reflexões antes de soltar a grande bomba de onde está e o que ele fez. É muito fácil se levar pelas cores e movimentos da animação, embalados pela narração de Tim Blake Nelson e o sensível texto.
Impossível não pensar também na questão das pessoas no corredor da morte, a complicada situação da população carcerária e tudo que envolve esses temas que o curta aborda, sem quere justificar o que o protagonista fez, apenas humaniza-lo, ainda mais no segmento sobre o tato, onde o simples toque de outro ser humano o fez pensar em uma vida completamente diferente da que levou.
Um filme que enche os olhos e pode ser assistido diversas vezes, sempre percebendo ou sentindo algo novo enquanto nos sensibilizamos com a história e seus pensamentos.
Ninety-Five Senses está disponível no Documentary+, em áudio original em inglês sem legendas.
Our Uniform
(2023)
Filme iraniano, roteirizado, dirigido e protagonizado por Yegane Moghaddam, o curta disserta sobre a infância da realizadora, marcada pelos uniformes escolares femininos do Irã, onde o uso do hijab – peça de roupa que pode ser um lenço ou capuz que cobre os cabelos – é obrigatório inclusive para pessoas que não são mulçumanas. A animação simples, mas efetiva, se passa em cima das texturas das roupas mencionadas, aproveitando seus movimentos e formatos para afetar o próprio desenho, com um toque de stopmotion.
Com ares de primeiros capítulos do quadrinho Persepolis e um humor delicadamente balanceado para ser bem recebido em seu país de origem, o curta vai falar de modo suave sobre igualdade de gênero e as roupas como forma de expressão em um lugar onde as pessoas são obrigadas a seguir regras rígidas de vestimentas. Em nenhum momento o discurso é forte ou agressivo, mas a rebeldia e o ímpeto para romper com o sistema imposto estão lá, em meio às camadas de tecidos e pequenas mechas de cabelo para fora do lenço.
A criatividade fez desse não apenas um dos meus curtas favoritos da categoria este ano, mas foi sua leveza ao falar de temas tão sérios que realmente me encantou. Divertido de assistir e com muito a dizer.
Our Uniform pode ser comprado ou alugado para assistir em seu site oficial.
Carta para um Porco
(Letter to a Pig, 2022)
Filme coproduzido em uma parceria entre Israel e França, escrito e dirigido por Tal Kantor, era o curta mais potente da competição, contando a história de Alma, uma garota que ao ouvir o relato de um sobrevivente do Holocausto entra em uma reflexão íntima e séria sobre os extremos da natureza humana.
A animação experimental que dá uma estética única ao curta já foi usada pela diretora em uma produção anterior que também tratava de memórias. Ela mistura rotoscopia – técnica que consiste em animar por cima de uma imagem real – com técnicas de desenho para fazer a animação parecer com uma representação da memória, deixando a arte intencionalmente fragmentada e incompleta. Alguns elementos são mais definidos e você lembra melhor, enquanto outros são mais difusos e incertos, o que também direciona nosso olhar, pois com poucos elementos em tela, é fácil ter a atenção direcionada para onde o filme quer. É algo interessante de observar, as formas humanas realistas misturadas às linhas únicas, que ela descreve em entrevistas como “uma tentativa de capturar alguém antes que suma”.
A trama é inspirada na experiência pessoal da realizadora como estudante, o encontro que teve com um sobrevivente do Holocausto e um forte sonho que teve depois. Assim como Paquiderme, é uma história interpretativa, mas com algumas coisas claras. Nossa geração é a última a ter contato com sobreviventes do Holocausto, depois teremos sim muitos registros, mas será uma memória que não é nossa e corremos o risco de repetir erros violentos, seja por medo ou vingança.
A questão do animalismo se torna claro conforme a obra passa, com o porco como questão central, animal muito usado para histórias desse tipo (como o quadrinho MAUS ou o livro A Revolução dos Bichos) e símbolo forte na religião judaica, mas conforme as crianças assumem características de porcos enquanto agridem um outro porco, as nuances surgem. Para mim, a mensagem principal é que no futuro, para não repetirmos erros, é preciso não enxergar as outras pessoas como animais ou seres inferiores e se esforçar para ter o mínimo de gentileza e empatia.
Uma mensagem difícil de passar e difícil de receber, mas o sentimento que fica em geral, é bem claro.
Carta para um Porco não está disponível para assistir, mas no site de Tal Kantor é possível assistir aos seus filmes anteriores com áudio original em hebraico e legendas em inglês.
War is Over!
(2023)
Por fim, o vencedor da categoria este ano é um filme estadunidense, escrito por Dave Mullins e Sean Lennon, dirigido por Dave Mullins, produzido por Brad Booker, apadrinhado por Peter Jackson e inspirado na música de John Lennon e Yoko Ono. A história ambientada na Primeira Guerra Mundial fala sobre dois soldados em lados opostos das trincheiras que jogam xadrez através de jogadas escritas em bilhetes transportados por um pombo correio, sem saber com quem estão jogando.
A estética lembra a da série Arcane (2021 -) ou de alguns episódios de Love, Death and Robots (2019 -) ou de jogos atuais, o 3D pintado, algo que ainda é bonito, mas já não é novidade e a obra também não tenta inovar ou ser criativa a partir disso. O design dos personagens fica em um lugar comum, lembrando o que é feito em personagens da Pixar, denunciando o currículo do diretor.
A verdade é que passamos tanto tempo no jogo de xadrez e tão pouco no combate real que a história parece ser de fato sobre xadrez e perde a mensagem que realmente quer passar. A analogia é entendível, afinal o xadrez é um campo de batalha e surgiu de jogos que simulavam campos de batalhas reais, mas acabou se tornando algo competitivo sem ser violento. O equilíbrio entre os dois elementos e em especial para quando o filme foca apenas na guerra deixa a desejar.
Quando entramos na batalha em si, parece muito utópico que ao se encontrarem os jogadores de xadrez simplesmente decidam parar de lutar e fazer os outros pararem também, o filme perde força onde ele deveria chegar ao ápice de sua emoção por investir em respostas simples em um contexto onde nada é simples.
Parece que para parar uma guerra, é questão de simplesmente querer, mas sabemos que é muito mais complicado do que isso. Quando a música começa a tocar no final, como uma mensagem que hoje em dia é sobretudo natalina, é muito brega. Sem contar que apesar da temática da violência o contexto da Primeira Guerra Mundial foi muito diferente do contexto Guerra do Iraque, que inspirou de fato a música.
Um filme facilmente esquecível cuja mensagem parece ser: guerra é ruim. Parem a guerra. Joguem xadrez. A intenção é boa, mas falta vontade para sair do básico, óbvio e raso.
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Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.