Não sou muito fã de biografias, por dois motivos: normalmente, procura-se condensar uma vida inteira em algumas horas, sendo que a vida humana já é complexa por si. E, se alguém foi escolhido para ter sua história de vida contada através da ficção, com certeza toda a complexidade corre o risco de ser simplificada; e, na maioria das vezes, as escolhas dos momentos que são mostrados se torna arbitrária, o que pode prejudicar a narrativa. Prefiro quando é feito um recorte, escolhendo-se um momento ou um período específico da vida do biografado. Ao meu ver, isso tem muito mais potência dramática e consegue fazer mais jus à pessoa. É o caso deste Rustin (2023), lançado pela Netflix ano passado. O filme rendeu, agora, uma merecidíssima indicação ao Oscar para o seu protagonista, Colman Domingo, que faz um trabalho extraordinário como o personagem-título.
Uma das figuras mais importantes do movimento negro estadunidense, Bayard Rustin (1912-1987) foi conselheiro e amigo íntimo de Martin Luther King. Além da mente por trás da organização da famosa Marcha sobre Washington, ocorrida em 28 de agosto de 1963. Movimento que levou cerca de 250 mil pessoas até a capital do EUA em um marco para a luta dos direitos civis. O filme de George C. Wolfe – que também dirigiu A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom – 2020) – escolhe contar esse momento da vida de Rustin como forma de resgatar sua importância para a história estadunidense. Importância essa, muitas vezes menosprezada e quase apagada devido à homossexualidade do personagem.
Apesar da direção burocrática de Wolfe, Rustin é um trabalho bastante competente e bem-sucedido na sua proposta de trazer à luz alguém que foi relegado ao rodapé da história. Mesmo entre aqueles que deveriam lhe apoiar. Muito do sucesso do filme se deve à brilhante atuação de Colman Domingo. O multifacetado artista (além de ator, ele é escritor, diretor e produtor) vem ganhando visibilidade nos últimos anos e, assim como seu personagem, é gay.
Não vou entrar na discussão de que personagens LGBT+ deveriam ser interpretados por pessoas que pertençam à sigla. Mas, é muito poderoso ver alguém que entende de fato a vivência de um personagem, interpretando-o. Domingo domina Rustin em cada cena que aparece. E mostra Bayard em toda a sua complexidade, traduzindo isso em gestos, olhares e uma linguagem corporal que diz mais sobre esse homem do que qualquer diálogo. Ele transforma alguém que poderia facilmente cair no estereótipo de “herói imaculado” em um ser humano de verdade. E, mesmo sendo um pacifista ferrenho, sabia quando era necessário gritar para que sua voz fosse ouvida. E que, mesmo com toda a força que demonstrava, ainda temia sofrer por ser duplamente alvo de preconceito.
Talvez pela força de seu protagonista, o restante do elenco oscile entre a competência e o razoável. Neste segundo caso, incluo Aml Ameen, que faz um Martin Luther King apático e sem carisma (exatamente o oposto do que o verdadeiro King era). Ainda mais se levarmos em conta que tivemos, há alguns anos, uma ótima versão de Martin pelas mãos de David Oyelowo, em Selma: Uma Luta Pela Igualdade (Selma – 2014).
Outro que traz uma atuação simples e monótona é Chris Rock como Roy Wilkins. O presidente da NAACP (sigla em inglês para a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), ficou reduzido quase a um vilão de novela. Isso, aliado ao clímax desprovido de força dramática, torna apenas boa uma obra que poderia ser tão impactante quanto o referido Selma. Felizmente, o trabalho de Colman Domingo se sobrepõe aos defeitos que o filme possa ter. Além de servir para tirar das sombras da História alguém tão importante como Bayard Rustin. Obras assim são mais um passo dado em direção a um futuro onde cada vez mais veremos as vidas de pessoas realmente diversas tomando de conta das telas. Mostrando que o mundo é muito mais colorido e interessante do que a indústria do cinema nos fez achar que é.
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Cineasta e roteirista, formado em Letras e graduando em Cinema, respira literatura, filmes e séries desde que se entende por gente. É viciado em sci-fi e terror, e ama Stephen King, Spielberg e Wes Craven. Tem mais livros em casa, e séries e filmes no computador de que seria humanamente possível ler e assistir, mas não vai desistir de tentar. Não consegue lembrar o que comeu ontem, mas sabe decorado os vencedores do Oscar de melhor atriz do últimos trinta anos (entre outras informações culturais inúteis).