Quando foi divulgada a notícia de que o diretor canadense Denis Villeneuve iria adaptar o clássico da literatura de ficção científica Duna, logo fiquei na expectativa, principalmente porque A Chegada (2016) é um dos meus filmes favoritos do gênero e também porque até o momento ele não havia entregado nenhum filme ruim. Apesar de saber da dificuldade em adaptar o material, que é complexo, extenso e cheio de conceitos filosóficos, políticos e religiosos, confiei que teríamos algo no mínimo interessante. Então chegou 2021, em plena pandemia, e Duna (Dune, 2021) estreou, se revelando um belíssimo trabalho, à altura da obra que o originou. Acho até injusto compará-lo com as adaptações anteriores, o filme de David Lynch – que nem de longe teve a liberdade que Villeneuve teve – e a minissérie do canal SyFy, que apesar de bastante fiel, não teve recursos suficientes para dar conta do que uma produção dessas exige. Ainda em relação ao filme do Lynch, esse novo Duna teve a vantagem de não precisar condensar toda a história em um único filme, dividindo-a entre essa primeira parte e uma possível sequência. Digo possível pois, apesar de ter sido lançado em um momento difícil para a humanidade – e, obviamente, para o entretenimento –, Duna conseguiu uma bilheteria apenas modesta (dado o escopo do filme), que poderia ter inviabilizado a continuação da história, porém o sucesso crítico que resultou numa vitória de 6 Oscars (dentre 10 indicações) fez com que a Warner oficializasse a parte dois, o que nos leva a esse Duna: Parte Dois (Dune: Part Two, 2024).
Primeiro, preciso deixar claro uma coisa: ainda que eu não ache a primeira parte de Duna impecável – algumas atuações destoam e o ponto no qual o diretor resolve encerrar a história parece, à primeira vista, anticlimático – não concordo com uma reclamação que boa parte do público tem, que é considerar o filme chato e lento demais. Pelo contrário, essa parte da narrativa pede um ritmo de suspense que culmine numa explosão de violência, e Villeneuve corresponde bem a isso. No entanto, é inegável que, para um público acostumado a blockbusters acelerados (e a vídeos do Tik Tok), Duna é um filme que não apressa sua narrativa, buscando dar tempo para que ela e os personagens se desenvolvam satisfatoriamente. Além disso, o próprio livro reserva a maior parte da ação física (batalhas e lutas) para depois de sua metade, o que levou o diretor a prometer que a parte dois seria bem mais cheia de ação. Essa foi somente uma das promessas de Villeneuve sobre a continuação de Duna e, tendo visto o filme agora, posso dizer que ele cumpriu todas com louvor.
Duna: Parte Dois é um espetáculo visual ainda mais deslumbrante que o primeiro filme: não somente a direção pincela quadros belíssimos que não servem apenas para encher os olhos, mas que se justificam narrativamente, como toda a parte técnica está acima do filme anterior (o que, por si só, já é um feito admirável), sejam os efeitos visuais, a trilha que casa perfeitamente com todos os momentos, o design de som impecável, entre outros aspectos que, mesmo que apresentem uma unidade dramática com o filme anterior, mostram que a produção se esforçou ainda mais em fazer um trabalho de alto nível.
Além disso, o que faz essa segunda parte da história ser ainda mais impactante que o primeiro Duna é a direção extremamente firme de Villeneuve. Mesmo sendo um produto para um estúdio arrecadar milhões, em nenhum momento deixamos de ver que há um artista comandando tudo isso. É possível perceber que ele deu tudo de si, e isso fica evidente não somente nos aspectos técnicos que mencionei, mas na própria condução da narrativa. Ainda que o filme comece quase que imediatamente onde o anterior terminou, há uma sensação de que a história está mais redonda, mais bem acabada, e os arcos dramáticos dos personagens são mais nítidos, tornando Duna: Parte Dois um filme mais coeso.
Outro ponto a se destacar é o elenco: se no primeiro filme tínhamos algumas falhas – o Duncan Idaho de Jason Momoa mostrou o quão limitado ele é como ator, assim como o Rabban de Dave Bautista beirava o histérico –, nessa segunda parte todas as atuações vão do bom ao excelente. Particularmente, fiquei impressionado como Timothée Chalament e Zendaya fazem um trabalho denso e maduro. Ao meu ver, ele tem a missão mais difícil, que é tornar Paul alguém relacionável com o público, tirando boa parte da infantilidade e da arrogância descabida que o personagem tem no livro. É uma atuação potente, que equilibra as angústias de um jovem que rejeita firmemente uma posição de poder divino que ele acredita não merecer, ao mesmo tempo que sabe que precisa assumir um lugar de liderança como forma de sobrevivência. Zendaya, por outro lado, acrescenta camadas à sua personagem que transcendem o que é visto no primeiro livro. Sua Chani tem, além da força e da inteligência de uma grande guerreira, uma doçura e um bom humor que justificam a paixão de Paul por ela. Além disso, é através dela que Villeneuve discute um dos temas principais da obra: o messianismo.
Nesse ponto, é interessante perceber como o diretor elege como principal, dentre os vários outros temas atemporais do livro, essa questão religiosa, ainda mais quando vemos que o poder cada vez maior da extrema-direita vem fazendo com que as pessoas procurem líderes que sejam mais que pessoas, sejam quase divindades inquestionáveis e intocáveis. A abordagem de Villeneuve, que também roteiriza o filme, mostra a necessidade de líderes que unam um povo, mas também critica o fanatismo e a forma como a religião pode ser usada como arma política.
Também é importante ver que a direção mantém – e até mesmo aumenta, em relação ao primeiro filme – a escala épica da história sem nunca perder de vista os personagens, seus dilemas e complexidades, algo muito próximo do que Peter Jackson fez em O Senhor dos Anéis. Ou seja, há a sisudez e o peso que uma narrativa desse tipo pede, com grandes movimentos dramáticos, mas isso não sufoca o lado humano da história.
Ao final da sessão, o que fica é a reafirmação do talento de Denis Villeneuve como um dos melhores contadores de história da atualidade, com uma carreira que continua invejável, na qual a duologia Duna assume um lugar de destaque, com essa segunda parte se mostrando uma experiência única e um dos melhores filmes do ano. E que venha Messias de Duna!
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Cineasta e roteirista, formado em Letras e graduando em Cinema, respira literatura, filmes e séries desde que se entende por gente. É viciado em sci-fi e terror, e ama Stephen King, Spielberg e Wes Craven. Tem mais livros em casa, e séries e filmes no computador de que seria humanamente possível ler e assistir, mas não vai desistir de tentar. Não consegue lembrar o que comeu ontem, mas sabe decorado os vencedores do Oscar de melhor atriz do últimos trinta anos (entre outras informações culturais inúteis).