Duna – Sonhos são políticos

A beleza da ficção científica, eu já comentei em várias ocasiões, é que, ao contrário do que possa parecer, ela fala muito mais sobre o passado e o presente da humanidade do que sobre um possível futuro. É óbvio, já que nós conseguimos vislumbrar muito melhor, mesmo que com alguma dificuldade, nosso agora e nossa História do que o porvir, por maior que seja sua crença em videntes. Isso talvez seja a justificativa para um historiador como eu gostar, consumir e falar tanto sobre produções desse gênero. É um tipo de história que nos permite brincar com os conceitos, com possibilidades, com decisões e consequências as mais variadas possíveis, mas tudo isso com uma base no que já vivenciamos antes ou estamos vivenciando no momento. E ainda mais interessante é perceber como muitas dessas produções, mesmo algumas que já contam várias décadas de idade, continuam ganhando novas versões, adaptações, remakes, o que nos dá uma pista de como o tempo histórico é complexo e não uma linha reta e progressiva como se costuma imaginar. Complexo, porque ele não é linear, mas também não é cíclico, ou mesmo espiralado, precisamos é aceitar que nossa noção de tempo histórico é mutável, mas o mais importante, que tudo o que vivemos são processos, geralmente longos e lentos.

Duna não é exatamente uma ficção científica, mas talvez um subgênero desta, o que se convencionou chamar de Ópera Espacial (Space Opera), algo como um épico que envolve fantasia e aventura no espaço, podendo ou não se passar num futuro, tendo como maior exemplo dessa espécie nossa querida Guerra nas Estrelas (Star Wars para os mais jovens). Romance escrito por Frank Herbert, lançado em 1965, Duna é uma trama espacial política que se passa num universo (futuro?) organizado quase como uma sociedade feudal, onde famílias dominam planetas e todas elas estão submetidas a um “Imperius”. Afora os nomes inicialmente estranhos das casas, linhagens e planetas, não há nada exatamente complexo nisso. Os conceitos utilizados por Herbert são adaptados do nosso universo, o real, e isso é maravilhoso. O autor então os utiliza para criar uma trama extremamente sofisticada de intrigas e traições, reviravoltas políticas e quedas de linhagens, mas também de profecias e espiritualidade, amor e ódio.

Tudo isso eu não sei pelo livro de Herbert, já que ainda não o li, mas pela excelente versão para o cinema dirigida por Denis Villeneuve, com roteiro dele em parceria com Jon Spaihts e Eric Roth  (tá, e um pouco das lembranças que ainda insistem em se manter na minha cabeça do malfadado filme de 1984 dirigido por David Lynch). É óbvio que o livro muito provavelmente possibilita um maior aprofundamento, mas eu não tenho mais idade pra questionar qualidade de adaptação de cinema baseado no material literário original. O que importa é que Duna (Dune, 2021) conseguiu perfeitamente me apresentar a este rico universo e ao mesmo tempo deixar claros os referenciais base que busca em nossa História. De imediato me vi refletindo sobre a validade de um didatismo que Villeneuve já abriu mão em muitos de seus outros filmes, como O Homem Duplicado (Enemy, 2013), A Chegada (Arrival, 2016) ou mesmo em Blade Runner 2049 (2017), mas ao terminar a sessão conclui que a escolha por uma explicação mais objetiva sobre tão complexa trama mais a beneficia do que a enfraquece. Isso porque, como eu mesmo já mencionei aqui, diferente do material base dos outros três filmes do diretor que citei (respectivamente o livro do Saramago, o conto do Ted Chiang e o filme do Ridley Scott/livro do Philip K. Dick), presumo que a intenção de Herbert não era trazer uma reflexão existencial e espiritual complexa, mas algo muito mais palpável, uma reflexão sobre a nossa sociedade e seu funcionamento (e claro que isso também há nos outros citados).

Mas sem mais me alongar em conjecturas sobre um livro que ainda não li, o que quero dizer é que o filme me levou a pensar o mundo em que eu vivo e seus mais terríveis habitantes, nós humanos. Duna é, assim, um filme sobre o imperialismo. Subjugação de povos autoproclamados mais desenvolvidos sobre grupos tidos como inferiores para a simples exploração comercial com objetivo de lucro. Um único planeta detém toda a produção natural da maior riqueza do universo, a Especiaria, o que o torna alvo do Império e de várias famílias “nobres”, que se acham no direito natural de subtraí-la como bem entender. Nada muito diferente do que os ingleses fizeram com Índia e China, com o que os belgas fizeram no Congo, entre muitos outros exemplos que já conhecemos. E consequentemente fala também sobre discriminação racial baseada numa suposta ciência, intolerância religiosa e cultural, sem contar a destruição substancial do meio ambiente explorado.

Possivelmente os fãs mais antigos e tradicionais da épica obra de Herbert devem me odiar por achar que estou simplificando-a ou até diminuindo-a, e novamente me vem a culpa de ainda não ter lido o livro, mas pensando por um lado positivo isso me dá liberdade de pensar o filme de forma independente. E sim, Villeneuve dá extrema importância para a questão espiritual que carrega a trama juntamente com a política. “Sonhos são mensagens das profundezas”, e algum psicanalista deve concordar comigo quando digo que os sonhos, as profecias, as religiões e suas doutrinas são tão políticas quanto qualquer outro aspecto da vida humana. E pra mim este é o grande trunfo deste Duna, ele traz toda a pompa épica de uma Ópera Espacial, o visual deslumbrante, uma trilha sonora majestosa e uma intrincada teia de personagens, mas tudo isso está ali para favorecer o objetivo de unir o real e o surreal, não só dentro do universo do filme, como do filme em si com o nosso próprio universo.

Cada ritual, forma de se vestir, de se comunicar, de se portar perante os outros, cada visão do protagonista e suas escolhas, bem como a de vários outros personagens como sua mãe ou o médico da família, cada luta armada ou troca de olhares, está ali por um motivo, o de construir a complexidade daquele universo, que está para entrar em choque a qualquer momento. A trilha de Hans Zimmer pontua cada uma dessas ações, nos levando a conforto ou desconforto conforme a história e o filme demandam. A fotografia de Greig Fraser é competente em nos imergir em cada um daqueles ambientes. E a direção de Villeneuve não se apressa em nos apresentar os detalhes de tudo que ainda vamos ver. E em nenhum momento o filme se torna enfadonho, já que logo entendemos o objetivo de cada movimento por mais lento ou insignificante que este pareça.

E é quando preciso me debruçar sobre o grandioso elenco. Não é necessário pontuar aqui a qualidade individual dos atores que compõem o elenco de Duna, mas sim de como a escolha de cada um deles é acertada e como cada um consegue aprofundar seus personagens, alguns mesmo tendo pouquíssimo tempo de tela. Timothée Chalamet como Paul Atreides, deve levantar  dúvidas, e confesso que tive as minhas antes de ver o filme, mas realiza muito bem a tarefa de interpretar um protagonista confuso sobre sua própria natureza, imaturo, taciturno, mas que se mostra em vias de um desabrochar, enquanto Rebecca Ferguson e Oscar Isaac como os pais de Paul, Lady Jesssica e Duque Leto, transmitem com maestria a mística e a altivez, mas também a delicadeza de pais preocupados, mesmo entendendo certas obrigações que precisam por eles ser cumpridas, seja com o filho, seja com seu povo.

Um enredo assim tão rico, talvez por costume meu, logo me fez desejar que ao invés de um filme tivéssemos uma série nos contando essa história, com mais tempo e talvez mais liberdade. Mas é preciso lembrar que este é apenas a primeira parte de uma história, e que essa história no total vai abordar apenas o primeiro livro de duas trilogias. Dentro de um universo que comporta várias outras histórias. Então só me resta ler o(s) livro(s) e esperar que essa semente (re)plantada por Villeneuve dê muitos e muitos frutos deliciosos.


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