Eco – Precisamos de mais disso

A Marvel em si possui uma enorme gama de personagens, sejam eles derivados dos quadrinhos, seriados animados, cinema ou televisão. Falando de quadrinhos – onde tudo começou -, a empresa veio aproveitando muitas de suas obras desde 2008 com o lançamento de Homem de Ferro (Iron Man, 2008) e então a relação entre quadrinhos e cinema se estreitou muito. Em seus anos existindo, o Universo Cinematográfico Marvel adaptou um enorme número de personagens dos quadrinhos. Isso é um pouco importante para começarmos o texto, pois uma personagem criada em 1999 incomodou algumas pessoas ao ser adaptada no live action e ganhar sua própria série, seu nome é Maya Lopes, a Eco. 

Razão disso? A personagem é uma mulher nativo-americana, surda e aparentemente há uma militância da cultura woke na personagem ganhando um seriado. Bem, é importante ressaltar a existência de mulheres, de pessoas nativo-americanas e pessoas com deficiência. Afinal, muitas pessoas reclamando da série da Eco existir são sobre como existe algum tipo de militância, como se homens brancos, sem deficiência, fossem a regra e tudo que não segue essa lógica fosse “forçado”. Então, apresentada num quadrinho do Demolidor, Maya Lopes foi um interesse amoroso de Matt Murdock, inimiga e filha adotiva de seu antagonista – Wilson Fisk, O Rei do Crime. 

Em 2021, Maya Lopes teve sua estreia na mídia live action aparecendo no seriado Gavião Arqueiro (Hawkeye, 2021), interpretada pela atriz surda e nativo-americana Alaqua Cox. Logo o seriado da personagem foi anunciado, sendo o primeiro spin de um seriado da Marvel a ser lançado. Tivemos uma prova da história de Maya, seu pai sendo morto pelo Ronin, a relação dela como “sobrinha” de Fisk e o envolvimento do Rei do Crime na morte de seu pai. Inclusive é importante apontar como o ponto de partida do próprio seriado da Eco foi a mercenária dar um tiro no Rei do Crime. 

Focar na ação de rua do UCM era uma importante necessidade, visto a qualidade dos confrontos no seriado do Gavião Arqueiro e como, no geral, os seriados da Netflix deixaram um buraco no coração do público neste quesito. Desde o anúncio do seriado do Demolidor para o Disney+ ainda não era claro o quanto do seriado da Netflix seria oficializado. Bem, para os criadores de Eco, todas as temporadas de Demolidor (Daredevil, 2015 – 2018) na Netflix aconteceram e isso é importante. Um pouco depois do lançamento de Eco (2024), foi anunciado a entrada de todas as séries da Netflix na linha temporal da Marvel.

As cenas de combate do seriado, especialmente nos primeiros episódios, são muito bem coreografadas e filmadas, conseguindo um tom crescente, arriscado e feroz. Claramente a ação da série realmente era um dos pontos mais importantes, principalmente porque foi a primeira produção Marvel Spotlight, com classificação indicativa para um público maior de 18 anos. Toda a brutalidade dos seriados Marvel Netflix foi muito bem traduzida pela diretora Sydney Freeland (diretora de quatro episódios) e Catriona McKenzie (diretora apenas do episódio 3). Aqui Eco se assemelha aos demais seriados, mesmo assim conseguindo manter a sua essência própria.

Não foi à toa a escolha pelas duas diretoras, ambas são indígenas. Catriona foi a primeira mulher australiana indígena a dirigir um episódio de série para a TV norte americana. Seus trabalhos incluem The Walking Dead (2010 – 2022), Supernatural (2005 – 2020) e muitas outras, mas seu primeiro longa foi Menino Satélite (Satelite Boy) em 2012. Já o nome de Sydney Freeland é recorrente, ela é uma mulher trans indígena, com trabalhos em webséries e longas já mencionados previamente no nosso site, como Her Story (2015 – 2016). Além de ter dirigido quatro dos cinco episódios, Sydney assina também como produtora executiva do seriado. Por já conhecer alguns trabalhos de Freeland, é notável como ela ao longo dos anos fez projetos dos mais diferentes gêneros, mas consegue trazer e amadurecer sua identidade para cada um deles. 

Trazer duas diretoras indígenas para o projeto não foi por acaso, outro elemento especialmente forte e presente na narrativa de Eco é sua herança indígena como parte do povo Choctaw. Mas a produção não parou na direção, o elenco consiste majoritariamente de pessoas indígenas e um dos pontos baixos foi ter tão pouco tempo com esses novos rostos. A família de Maya, seu povo como um todo, as gerações ‘ecoam’ dentro da personagem e isso foi uma nova forma de dar sentido ao codinome da personagem. Sua conexão com sua herança e seu povo é o que lhe dá forças, literalmente. Houveram mudanças dos poderes e habilidades da personagem nos quadrinhos para a série, fazendo isso ter mais sentido. 

Dentro da história, os episódios começam com uma cena de abertura em forma de flashback, muitas vezes seguindo estilos diferentes para apresentar personagens do povo de Maya, com cada uma das personagens dando nome aos episódios. Embora compreenda a decisão, os flashbacks funcionariam melhor diluídos ao longo de seus episódios do que como sequências de abertura. A história ganharia mais dando espaço a essas personagens para brilharem, assim como as personagens de Tantoo Cardinal (Chula, avó de Maya) e Devery Jacobs (Bonnie, prima de Maya). Inclusive a química de cena do elenco feminino é algo a marcar, pois as atuações de Alaqua, Tantoo, Devery e Katarina Ziervogel (Taloa, mãe de Maya). 

Um dos pontos mais importantes do seriado é exatamente como o fato de Maya ser surda não é ignorado pelos outros personagens, tendo a maior parte dos diálogos em língua de sinais. Sua mãe também era pessoa com deficiência auditiva, então o costume da família em se comunicar é algo especialmente tocante. Outro fato importante é como a atriz, também surda, Alaqua Cox, foi recebida em set pela equipe e elenco falando em linguagem de sinais. É importante trazer a lógica de inclusão para além do seriado e honestamente Eco foi uma das produções baseada em quadrinhos mais importantes para isso em alguns sentidos. Um dos diálogos mais marcantes da série, realizado por Alaqua Cox e Tantoo Cardinal, foi entregue de forma divina totalmente em linguagem de sinais, provando como a fala não é a única forma de entregar divinos diálogos. 

Mas precisamos falar como nem tudo são flores. Eco obviamente não deveria ser um projeto de apenas cinco episódios por muitas razões, uma delas sendo como parece ter deixado de lado muito das relações da Maya com seus familiares. Outro fator notável é como a montagem às vezes tem rompimentos de ritmo em momentos aleatórios, não conseguindo se manter sempre numa lógica concisa. Mais da metade do primeiro episódio é apenas uma apresentação da história de Maya, só estabelecendo o seu “mundo comum”, e quando ela sai desse mundo comum (incidente incitante) o episódio joga algumas informações e encerra. O maior pecado da série é ter poucos episódios, podendo ter aproveitado muito do mundo criminoso, do núcleo familiar, e tantos outros elementos apresentados. 

Dentre obras da Marvel com a mistura de elementos de ação mais realistas com o mundo místico temos dois exemplos fora Eco, são eles Punho de Ferro (Iron Fist, 2017 – 2018) e Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings, 2021). Se a primeira tem efeitos horríveis, uma falta da explicação decente para como a magia funciona e uma mistura podre do real e do místico, Shang Chi optou por transitar direto de um mundo para outro. Mesmo assim, a narrativa da magia dentro do “mundo real” ainda se traduzia muito bem, pois além de tudo é um orçamento de longa metragem da Marvel. Eco está, nesse sentido, no meio, pois seus poderes são apresentados de uma forma razoável, mas não muito bem explicados e os efeitos não se traduzem tão bem no seriado. 

Encerro esse texto falando com todas as palavras como Eco é uma das obras mais importantes da Marvel em inúmeros contextos sociais, com uma ótima história, ótimas atuações e uma bela mensagem. Infelizmente por razões óbvias o seriado é o com menor número de episódios da história do UCM, além de ser alvo de críticas por ter uma protagonista PCD, mulher, surda e indígena. Algumas estruturas são bem mais difíceis de quebrar, não é como se a Marvel e a Disney fossem reais aliadas dessas causas, mas em termos de narrativas e produções fizeram algo importante. A estreia do seriado impulsionou no Disney+ seriados como Gavião Arqueiro, Demolidor e O Justiceiro (The Punisher, 2017 – 2019), além de ter marcado e confirmado a existência dos eventos das séries da Netflix no UCM. É de se esperar mais da personagem de Alaqua Cox no futuro da Marvel, pela surpreendentemente boa recepção do público ao seriado.


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