RESENHA | A Cantiga dos Pássaros e das Serpente, de Suzanne Collins

Após o estrondoso sucesso de sua trilogia Jogos Vorazes (publicada entre 2010 e 2011) e suas respectivas adaptações para o cinema (lançados entre 2012 e 2015), a escritora estadunidense Suzanne Collins decide em 2020 revisitar seu incrível universo distópico. Mas ao invés de explorar os acontecimentos posteriores à revolução causada por Katniss Everdeen, Peeta Mellark e companhia em Panem, Collins escolhe retornar ao misterioso passado do país, mais precisamente 64 anos antes do início dos eventos da trilogia original, e tendo como protagonista ninguém menos do que Coriolanus Snow, o cruel presidente de Panem e principal antagonista da trilogia Jogos Vorazes.

Em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes acompanhamos um jovem Coriolanus, que aos 18 anos tenta assegurar a honra do nome de sua outrora rica família destacando-se como excelente aluno da Academia da Capital. Anos após o conflito com os Distritos, onde Crassus Snow, pai de Coriolanus, morreu como herói militar lutando contra os rebeldes em uma emboscada, o que restou da pomposa família foi apenas a idosa avó, sua bondosa prima Tigris e um decadente apartamento em um prédio com elevador quebrado. Mas tudo começa a mudar quando durante a 10ª edição dos Jogos Vorazes os idealizadores decidem destinar para cada tributo um mentor, escolhido entre os estudantes do último ano da Academia, ocasionando no encontro entre Coriolanus Snow e Lucy Gray Baird, a jovem tributo do Distrito 12.

Suzanne Collins parte do princípio de que a grande maioria dos leitores deste prequel já estão familiarizados com as regras que mantém sua distopia (mesmo que apenas pelas adaptações cinematográficas bastante fiéis ao material original). A Rebelião dos Distritos e a motivação para a criação dos Jogos Vorazes são mencionados na trilogia original, mas a volta ao passado possibilita a Collins apresentar aos seus leitores as várias e misteriosas lacunas de informações que compõem a história recente do país. E ter como guia e ponto de vista desta história o execrável Presidente Snow em sua juventude me parece uma escolha arriscada e curiosa, mas sem dúvidas acertada, já que o mesmo é um personagem tão fascinante quanto  enigmático. A revelação de sua personalidade antes de se tornar o Snow que conhecemos e a justificativa para o vilão que iria se tornar é por si só um excelente estímulo para que queiramos acompanhar sua história.

O potencial revolucionário da escrita de Collins se mantêm, como já se mostrava claro em sua trilogia anterior, mas se complexifica ainda mais conforme percebemos que a guerra não pode ser sintetizada em uma simples disputa entre bons e maus, heróis e vilões. Claro que a autora já havia deixado isso claro, especialmente no último livro de Jogos Vorazes, A Esperança, quando apresenta um outro lado dos rebeldes, mas nesta nova obra ela leva estes questionamentos a um outro limite. Mesmo que já odiemos o velho Presidente Snow é difícil não ter um mínimo de empatia quando compreendemos o contexto em que o jovem esteve inserido durante os acontecimentos do livro. Por outro lado, podemos perceber que muito da ideologia egocêntrica, da vaidade e da cobiça do personagem já dão sinais mesmo em sua juventude.

A escrita de Collins ainda tem como alvo leitores adolescentes, motivo pelo qual já devemos esperar relações românticas quase idealizadas, assim como já havia em Jogos Vorazes, mas ouso dizer que em A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes isto é também potencializado. O romance entre Coriolanus e Lucy Grey é tão exageradamente construído que chega a ser difícil acreditar que seja possível. Não só por serem duas pessoas de “castas” diferentes, o que já rende um fabulesco “amor impossível”, mas pela facilidade com que acontece. Cheguei a desconfiar inúmeras vezes se a garota não estaria usando a paixão do protagonista como forma de sobreviver à Capital e aos Jogos. Outro exagero, mesmo que levemente mais crível, é a construção da vilã, a excêntrica Doutora Gaul. A cientista parece muitas vezes inspirada no arquétipo clássico do médico ensandecido e apaixonado por testes inescrupulosos e antiéticos, ou até mesmo nos cruéis médicos nazistas durante a Segunda Grande Guerra, porém, ainda que excessiva, a personalidade de Gaul acaba funcionando bem para antagonizar Snow ao mesmo tempo em que podemos perceber que há entre ambos uma admiração mútua.

A última parte do livro, que é dividido em três, pega o leitor de surpresa ao deslocar a história do ambiente da Capital e dos Jogos para o escuro e sujo Distrito 12, colocando seu protagonista em uma posição que mais uma vez nos faz compreender muito do que ele iria futuramente se tornar. Acaba sendo uma boa surpresa, e apresentando novos e interessantes personagens coadjuvantes, além de abordar laços que acabam ligando o passado e o futuro do personagem. Há aqui ainda mais destaque para a musicalidade da história, algo que sempre julgo corajoso em um livro, já que ao lermos as letras das canções apenas podemos imaginar sua sonoridade (além do que a tradução precisa estar muito bem afiada para que as letras funcionem, o que acho que acontece aqui), e mesmo que os Jogos em si já tenham terminado de forma apoteótica no fim da segunda parte, aqui a ação parece ser até mais intensa devido à tensão constante sentida pelo protagonista e que é muito bem transpassada para o leitor.

A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é uma leitura tremendamente agridoce, bem como deveria ser, mas também é deliciosa e empolgante na medida. Collins continua dando excelentes motivos para ainda ser considerada uma das maiores escritoras de literatura infanto-juvenil da atualidade. A continuidade da expansão deste universo me parece um acerto, levando-se em consideração a mentalidade de boa parte da juventude no contexto atual, e me agradaria se a autora continuasse nesta toada, pois ainda há muito a se revelar sobre a Panem de ontem, de hoje e de amanhã.


Título original: The Ballad of Songbirds and Snakes

Editora: Rocco Jovens Leitores

Publicação: 2021

Tradutora: Regiane Winarski

Nº de páginas: 576


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