Um humano bardo, uma elfa feiticeira, um anão comunista, um meio-elfo necromante ladino e uma clériga ⅛ orc entram numa taverna. Parece um cenário absurdo? Não para quem está acostumado a jogar RPG (o famoso Role-Playing Game), um jogo onde os jogadores criam e interpretam personagens em diferentes cenários, épocas e temas. Ganhou fama e notoriedade no Brasil não só, mas principalmente, com a Revista Dragão Brasil e Tormenta (anos 90/2000), e mais recentemente com os podcasts de diferentes campanhas do site Jovem Nerd, que acontecem há quase 10 anos e também com Ordem Paranormal (2020 -), o RPG de terror do streamer Cellbit.
Parece tudo muito convidativo? E é. Mas nem sempre foi assim, talvez ainda não seja… A comunidade nerd ou geek quase sempre é associada a uma comunidade composta de homens héteros, brancos e cisgêneros. E pelo número de relatos de machismo, misoginia, transfobia e racismo não só em mesas de RPG, como em vários outros lugares (filmes, séries…), entende-se que sim, essas pessoas não só fizeram, como ainda FAZEM parte da comunidade nerd. O que torna Desaventureiros (2018 -) uma websérie por si só revolucionária.
A Maré Geek, nascida da Produtora Maré Filmes, é a responsável pela criação de Desaventureiros. Em sua maioria composta (tanto no elenco, como na produção) por pessoas da Comunidade LGBTQIAPN+, a Maré Geek ressignifica o que é a comunidade nerd de forma profunda. Desaventureiros é a websérie sobre RPG que acompanha a Cia. do Dragão Bronzeado e seus membros: Vic (o bardo), Shi (a elfa), Touro Vegano (o anão), Fliq (o meio-elfo) e Geburath (se pronuncia Jébora – a ⅛ orc) por uma trama que parece simples na sua primeira temporada, apenas propondo brincadeiras com o gênero RPG e seus clichês. Porém, conforme avança, ainda no final da primeira temporada, passando pela segunda e chegando, enfim, na atual terceira temporada, a trama não só demonstra ser bem mais complexa e profunda, como passa a traçar analogias com o nosso mundo real. Tudo isso com um humor leve, um roteiro bem escrito (recheado de referências, metáforas e muito mais), uma pitada de musical, uma produção sensacional e uma atuação irretocável. Desaventureiros é tudo o que um grupo de RPG sempre foi, e, ao mesmo tempo, subverte não só os clichês de um RPG, como o que a própria comunidade nerd é. A identidade de gênero, a sexualidade, o poliamor e outros temas pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+ é constantemente discutida em diálogos dos personagens mais carismáticos que você vai conhecer.
Às vezes sutil, às vezes nem tanto, a série é certamente uma ótima recomendação para quem gostaria de se sentir representado em um meio complicado e muitas vezes repulsivo e problemático. Desaventureiros veio suprir uma demanda que eu até sabia que existia, mas é tão negligenciada que a gente até esquece o quão necessária ela é. Poder me sentir BEM representada por pessoas que de fato se interessam pela Comunidade LGBTQIAPN+ (afinal fazem parte dela) de forma leve, bem humorada, mas que, ao mesmo tempo, toca em todas as feridas, é tudo o que o futuro precisa. E esse futuro não vai ser dado de bandeja. Ele precisa ser forjado por pessoas que se importam, caso aqui da Maré. E toda essa produção custa dinheiro, embora a série esteja disponível gratuitamente no Youtube. Por isso, a Maré Geek possui um financiamento coletivo recorrente na plataforma Catarse.
Desaventureiros é muito profundo porque elus (es autores, atores e toda a produção) vivem isso na pele todos os dias. É muito revolucionário porque o mundo nerd ainda é repleto de gente preconceituosa. Há aqui uma necessidade visceral dos próprios autores de se colocarem dentro da narrativa, já que em outros seriados, filmes, mesas de RPG e outras infinitas formas de mídia, a Comunidade LGBTQIAPN+, não só é mal representada, como é negligenciada e ignorada diversas vezes. Desaventureiros é fresco, inovador e além de tudo isso, é divertidíssimo. É tocante e inspirador porque mesmo com todas as dificuldades, traumas, e problemas, a equipe da série ainda luta contra o sistema, ainda possui a necessidade de revolucionar o mundo, ainda tem esperança… E que sorte a nossa poder acompanhar a Maré Geek de perto.
Acesse aqui o canal da Maré Geek no YouTube e assista todos os episódios de Desaventureiros disponíveis.
Acesse aqui a página do Catarse de Desaventureiros e apoie essa galera!
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Cineasta finalmente formada, nascida e criada em São Paulo, infelizmente. Quando empregada, atua como fotógrafa. Prefere maratonar séries do que dormir, cai muito fácil em provocações, mas tem o riso frouxo e gosta de abraços.