Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes – “São as coisas que mais amamos que nos destroem.”

Nos anos 2000 a 2015 mais ou menos tivemos um grande boom de adaptações de livros. Todo estúdio queria ter a próxima grande saga de fantasia do cinema para si. Algumas dessas adaptações naufragaram logo no primeiro filme, outras conseguiram continuar, mas não chegaram a ser concluídas. No meio disso tudo veio Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012) e nossa querida Katniss Everdeen para fazer sua quadrilogia de sucesso.

Eu me lembro de, na época, reduzirem muito a franquia para apenas mais uma história de triângulo amoroso – muito comuns na época – ou só mais uma fantasia infanto-juvenil e etc. Mas reassistindo aos filmes, agora, alguns anos mais velha, pude ver que a saga não é nada disso. Existe sim esse romance, mas ele é apenas uma pequena parte em tudo que acontece. Esses filmes são muito políticos e muito bem pensados.

E para a surpresa de todes, no meio da pandemia, a escritora dos livros, Suzane Collins, lançou um novo volume para sua trilogia, uma história protagonizada por seu vilão, o Presidente Snow. Nem preciso dizer que toda a comunidade leitora ficou em polvorosa, indignada com essa ideia, afinal, com tantas personagens ela foi ele escolher logo ele? E quando o livro saiu: aclamação, a mulher é genial!

Claro, com a recente onda de prequels e reboots no cinema, não demorou nada para que uma adaptação desse livro fosse anunciada. Assim nasceu Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds and Snakes, 2023). Como uma preparação para esse filme, faz pouco tempo que revi a quadrilogia original, mas não reli os livros e nem li o próprio livro que o filme adapta, então minha análise é algo realmente mais voltada para o universo dos filmes.

No filme acompanhamos nosso velho conhecido Coriolanus Snow, dessa vez 64 anos antes de quando o conhecemos, com 18 anos, pouco depois da Rebelião, da guerra e dos Dias Escuros. Com a morte de sua mãe e seu pai, sua família caiu em desgraça e ele, sua avó e sua prima Tigris tentam manter as aparências luxuosas quando, na verdade, mal têm comida para colocar na mesa.

Ao jovem Coryo então, fica a expectativa de receber um prêmio em dinheiro ao se formar com honras na Academia, para que possa ir para a Universidade e trazer de volta toda a honra e glória de sua família. O problema é que, para ganhar o prêmio, agora ele deve ser mentor de um tributo na 10ª edição dos Jogos Vorazes, uma nova iniciativa dos organizadores para alavancar a audiência do evento. Assim, agora seu destino está atrelado à jovem magricela Lucy Gray Baird, do Distrito 12.

Eu assisti a poucos trailers do filme. Assisti ao primeiro teaser e peguei alguns spoilers internet afora e, quando entendi mais ou menos do que ia se tratar a história, me vieram questionamentos bem fortes: como vamos poder gostar desses personagens? Como vamos poder nos apegar e torcer por eles? Coryo, nós já odiamos por saber quem ele vai se tornar e Lucy Gray nós já sabemos que vai morrer, já que o único tributo do Distrito 12 que venceu os jogos antes de Katniss e Peeta, foi Haymitch na 50ª edição.

Mas, quer saber? A gente se apega, a gente gosta e a gente torce, mesmo sabendo disso tudo. Simplesmente porque a história é boa e os personagens são ótimos, mas eu vou chegar lá.

O filme é dirigido por Francis Lawrence, que dirigiu todos os outros filmes da saga, com exceção do primeiro. O roteiro é de Michael Lesslie e Michael Arndt, adaptando o livro de Suzane Collins. Lesslie ainda tem um currículo humilde como roteirista, mas participou da adaptação de Assasssin’s Creed (2016) e Arndt trabalhou nos roteiros de Jogos Vorazes: Em Chamas (The Hunger Games: Catching Fire, 2013) e Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), a fotografia é de Jo Willems que trabalhou com Lawrence nos outros filmes da saga e a trilha sonora é de James Newton Howard, que está sempre participando de grandes produções como Operação Red Sparrow (Red Sparrow, 2018).

O filme é bem longo: são quase 3 horas de duração. Mas ele me prendeu do início ao fim. Óbvio que muites vão achar cansativo, mas, em minha opinião, a história é interessante o tempo inteiro e mantém um bom ritmo, apesar do final ser diferenciado do resto da obra. Ouvi, inclusive, de pessoas que leram o livro e estiveram comigo na cabine de imprensa, que a terceira parte – o filme é dividido em três partes temáticas, que não necessariamente correspondem aos 3 atos – teve muitos acontecimentos cortados.

A direção e a fotografia trabalham bem juntas e são bem inteligentes, sabendo como mostrar Coryo e explorar suas nuances.  A ambientação é muito bem feita. Design de produção e direção de arte capricharam nesse ponto, deixando o filme com o visual que remete aos seus antecessores. Mas, dando um ar retro tec, lembrando muito a franquia de jogos Fallout, usando, por exemplo, televisões bem antigas, mas com cores e funcionando como computadores.

A violência está presente. Ela vai se intensificando com o passar do filme, mas o sangue quase não aparece. Acredito que uma decisão pensada para conseguir uma classificação indicativa mais baixa. Então, momentos onde o sangue deveria jorrar, às vezes vemos algumas gotas, ou uma quantidade maior de modo disfarçado.

E, Lucy Gray sendo uma cantora, o filme está repleto de canções originais que ela canta, muito fortes e bonitas, colocadas nos momentos certos, com direito a uma nova versão de “a árvore-forca”, todas belamente performadas por Rachel Zegler.

Entrando no campo das atuações, o filme teve uma polêmica logo no início de sua escolha por conta de Rachel Zegler, um assunto que acho que vale a pena trazer para o texto, mas que entendo que pode ser um pouco chato, até porque vou abrir um parêntese enorme e mexer e um vespeiro, então quem quiser fique a vontade para pular essa parte.

Começando aqui

Bom, ao que parece, Lucy Gray no livro é uma personagem latina e quando Rachel Zegler foi escalada, disseram que ela não é uma mulher latina, mas que usaria do fato de parecer uma para “roubar” papéis.

Deixando registrado que eu odeio a palavra “latino” por parecer reduzir a cultura e a diversidade de vários países em um bem bolado, como se tudo fosse igual e é isto.

Esse papo me deixou confusa e decidi fazer uma pesquisa sobre o tema. Não tenho certeza sobre as informações que trago aqui. Primeiro, segundo o censo dos EUA, para uma pessoa ser considerada “latina ou hispânica” ela tem que ter origem ou descendência de um país da américa latina, com colonização espanhola.

Por isso que, para os EUA, legalmente, pessoas brasileiras não são latinas, por mais que estejamos na américa latina e falemos uma língua latina, não fomos colonizados pela Espanha e não falamos espanhol. O mesmo se aplica, por exemplo, a Belize e Jamaica, que estão na América Central, mas são países de línguas germânicas, logo, brasileiros e jamaicanos não são considerados legalmente “latinos ou hispânicos” nos EUA. É como se, caso aqui no Brasil, o censo fosse desse modo, eu seria considerada alemã, mesmo tendo traços afro-indígenas, por algum parente que ninguém nem sabe quem é, ter vindo, por algum motivo, da Alemanha para o Piauí e ter culminado em mim nascendo no Ceará.

Pela lei dos EUA, Rachel Zegler pode ser considerada “latina ou hispânica” por sua mãe ser descendente de colombianos, mesmo ela tendo nascido nos EUA. Muitas pessoas famosas que fizeram carreira nos EUA, mas, que pensamos não terem nascido lá, na verdade nasceram. Outra coisa é a definição da internet, que não considera Zegler “latina ou hispânica”, mas considera Selena Gomez, que é neta de mexicanos e nasceu no Texas.

De um modo geral o público também lê Rosário Dawson e Zoe Saldaña como mulheres negras, sendo que a primeira é filha de uma mulher meio portorriqueinha, meio cubana, e a segunda é filha de pai dominicano e mãe dominicana com descendência porto-riquenha. Por que elas não são consideradas “latinas ou hispânicas”? Fica aí outra coisa bizarra para a internet: especialmente nos EUA, ser latino e negro são coisas excludentes, ou você é uma coisa, ou é outra.

Em se tratando de Estados Unidos, eu nunca sei se o que importa é a descendência e quão longe ela é importante (tataravós contam?) ou se o que importa são os traços da pessoa, ou sua nacionalidade.

Minha conclusão sobre assunto é: nenhuma. É tudo muito subjetivo e eu tenho dor de cabeça de tentar entender esse assunto. Quanto mais pesquisei, mais confusa fiquei. Fica a seu critério achar que Zegler é ou não é “latina o suficiente”. Para os estúdios, parece que é.

Terminando aqui

Indo primeiro de coadjuvantes, já que, tirando as protagonistas, as demais personagens parecem ser alguns estereótipos, Viola Davis como Dra. Volumnia Gaul não me agradou muito, mais pela personagem, por ser caricata e canhestra. A atriz faz o que precisa e se encaixa bem com ela, mas não é uma personagem que me agrada. Peter Dinklage como Reitor Casca Highbotton parece estar em um lugar de conforto, interpretando um homem angustiado que tenta fugir dessa angústia nas drogas, parecendo muito um Tyrion Lannister pouco charmoso.

Hunter Schafer, como Tigris, pouco aparece, apesar de atrair atenção quando está em tela. É a personagem da obra que mais é – levando em conta que praticamente todos são – um apoio para Coryo. Se sai bem, mas, seria bom explorar como ela estaria sustentando a casa. Talvez um curta-metragem sobre isso pudesse ser interessante. E Josh Andrés Rivera, como Sejanus Plinth, talvez, de todas as personagens mencionadas, o que mais tempo tem de tela e exerce a influência mais marcante. Tem uma boa performance, visto que Sejanus é quem mais transita entre momentos de calma e picos de emoção, nem sempre é fácil levar esse tipo de performance de forma acertada.

Por fim, Tom Blyth, como Coryo e Rachel Zegler como Lucy Gray, ambos entregam tudo o que têm, o que não têm e o que podem ter, se jogando completamente nas personagens como deveria ser, já que são personagens intensas e fortes que precisam desse empenho que resultou em um bom e convincente trabalho.

Na cabine assisti ao filme legendado, então não sei exatamente como está a dublagem e não sei informar se as músicas de Lucy Gray foram mantidas no áudio original ou se foram adaptadas. Mas confio que esteja um trabalho bem-feito e conta com nomes que eu gosto muito. Posso até assistir ao filme dublado só para prestigiador o trabalho deles, como Fabrício Vila Verde, Isabella Simi e Márcio Simões.

Caso você aí precise de uma recapitulação da história desse mundo, aqui vai: “Jogos Vorazes” se passa meio que no nosso mundo, mas em um futuro distópico, onde, depois de desastres ambientais e guerras nucleares, a população foi muito reduzida e alguns lugares desapareceram, seja pelo aumento do nível dos mares, seja por radiação ou até pura e simplesmente por fogo mesmo.

Eventualmente, as pessoas que sobraram se reuniram e fundaram uma nova nação, que ocupa o que seria toda a América do Norte (ou seja, Canadá, Estados Unidos e México), chamada Panem. A nova nação se dividiu em 14 territórios, a Capital o centro político-administrativo e 13 Distritos, cada um especializado em produzir algo que seria transportado para os outros Distritos e para a Capital.

Tempo passou, não me pergunte quanto, os Distritos ficaram com raiva pela Capital ser basicamente um local de pessoas ricas que não trabalhavam e viviam no luxo. Assim, liderados pelo Distrito 13, iniciaram uma Rebelião, que foi uma grande guerra. Esse período ficou conhecido como Dias Escuros, onde tudo estava uma merda em todo lugar. Para resumir, a Capital venceu a guerra, dizimou o Distrito 13, estabeleceu uma espécie de hierarquia. Quanto menor o número do Distrito e mais próximo da Capital, mais ricos eles seriam, por terem sido os que a apoiaram na guerra. Logo, quanto mais distante e maior o número, mais pobre e, como “punição”, estabeleceu-se os Jogos Vorazes. Anualmente, cada Distrito deveria enviar duas pessoas jovens, entre 12 e 18 anos, uma do sexo masculino e outra do sexo feminino, para a Capital. Lá, lutariam em uma arena até a morte, onde apenas uma pessoa dessas 24 sairia vencedora. Foi nessa guerra que o pai de Coryo morreu, no Distrito 12.

Partindo para a trama em si, eu entrei naquela sala de cinema esperando ver a ascensão de Snow como o líder que sabemos que se tornará, mas acabei me deparando com o declínio de Coryo, que vem antes disso, e foi incrível.

Sei que muitas pessoas atualmente não gostam de histórias que desenvolvem o passado de seus vilões por isso “humaniza-los”. Eu considero isso, na verdade, construir bem uma personagem e não ser maniqueísta, até porque, “Jogos Vorazes” nunca foi uma história maniqueísta.

Claro, vai ter quem tenha dó de Coryo, mas é colocado espertamente um contraponto a ele para testar até onde esse dó vai: Sejanus Plinth. Começando como um oposto do nosso protagonista, vindo de família tradicional sendo um “velho rico” e Sejanus como um “novo rico”, de família em ascensão vinda do Distrito 2, ele vive quase tudo que Coryo vive, passa pelas mesmas coisas, mas é transformado de outra forma e seu final não tem nada a ver com o de Coryo.

Outro ponto é que Coryo é, de sua primeira até última cena, uma pessoa questionável. Sempre agindo em prol de objetivos que sejam vantajosos para ele, deixando claro que ele vai fazer tudo para ter o seu prestígio de volta.

Entre poder e prestígio e uma vida simples e amorosa, é fácil saber o que ele escolheria. Lucy Gray até mesmo perguntou isso para ele em certo momento e ele não respondeu, porque ele sabe bem o que preferiria e ela não gostaria da resposta.

Foi muito curioso ver como eram os Jogos em seu início primitivo, para não dizer paupérrimo. As crianças simplesmente eram escolhidas, jogadas em um trem de carga como gado da pior qualidade e colocadas em uma arena (no melhor estilo romano possível) para se matarem bem rápido. Nada daquele luxo e dias de evento que vemos com Katniss. Era só um massacre mesmo.

Por conta disso, os Jogos estão dando pouca audiência na Capital. A população não vê sentido em assistir a essas mortes sem propósito e existe uma semente de rebelião, ali mesmo, já que a própria também sofreu com a guerra e ainda está se reconstruindo. O filme nos mostra como, para controlar os Distritos, a própria Capital precisa ser controlada primeiro. Aqueles habitantes precisam querer que nada mude ali para que, de fato, nada mude nos outros lugares.

É Coryo quem vem trazer o entretenimento para essa violência desmedida. Transformar jovens se matando em um show que representa todo o poder que aquele lugar exerce e precisa continuar exercendo para que novas rebeliões não aconteçam.

Ele e Lucy Gray são, além de ótimas personagens, excelentes contrapontos para o nosso outro casal: Katniss e Peeta. Lucy Gray é naturalmente tudo aquilo que Katniss precisou de aulas para aprender a ser: carismática, charmosa, desenvolta e misteriosa. Afinal ela é uma artista. Vinda de um povo nômade, o Bando, que me parece ser uma referência ao povo cigano/romani, ela foi obrigada pelo governo a se estabelecer no Distrito 12.

Assim como Peeta, Coryo é esperto e sabe logo o que precisa ser feito. Mas ele não tem a abnegação do nosso amado padeiro, que fazia tudo e mais um pouco por sua amada. Como sua versão mais velha já nos mostrou, ele sabe ler o ambiente e entender as pessoas em um piscar de olhos. É ótimo ver esse tirano se construindo, a identidade Snow se construindo, as rosas, o veneno, as luvas e etc.

Essas e outras referências, mais do que easter eggs vazios, são elementos importantes para a construção do personagem que aparecem aqui e entendemos porque o afetam quando aparece, 64 anos depois, com mais uma garota magrela do Distrito 12 entrando em seu caminho. São coisas que vão ficar com Coryo até que ele se torne o Presidente Snow e voltem com tudo para assombrá-lo.

Por fim, pássaros e serpentes estão o tempo todo na história, literalmente como cobras venosas ou tordos e gaios-tagarelas (quem não lembra desses?). Ou, figurativamente, como ex-colegas de Coryo da Academia e demais pessoas da capital, sempre esperando para dar o bote umas nas outras (me levando a pensar, inclusive, que a família Snow não deve ser a única passando necessidade e disfarçando), ou, como pessoas que desejam a liberdade, talvez até o próprio desejo em si.

“Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” nos mostra que seu mundo e suas discussões continuam muito atuais e relevantes, mantendo o nível de cuidado e esmero que a trilogia original teve e nos fazendo refletir sobre para onde nossa sociedade está caminhando.

Uma adição para a franquia que corresponde não apenas em qualidade, mas também com toda a ideia que se quer passar com esse universo. No fim, nos dar uma história sobre alguma outra edição dos Jogos apenas por ter personagens queridos, não faria sentido, levando em conta a mensagem que essa história quer nos passar.

Agora, parece que esse universo voltará a ficar em suspensão. As pessoas envolvidas, incluindo o diretor Francis Lawrence, parecem ter perfeita noção de que esse universo de Suzane Collins depende dela e de sua escrita. Não há interesse em fazer algo que não seja adaptado de seus livros, algo louvável, se pensarmos em como Hollywood vem insistindo em continuações cansativas para obras que deveriam ter sido deixadas para descansar há muito tempo.

Se Jogos Vorazes retornar, vamos saber que vai ser com qualidade.


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