Vai e Vem – Reforça memórias de um passado pandêmico que jamais devem ser esquecidas

“O ano em que tudo mudou radicalmente, onde as fronteiras reais e invisíveis ganharam outra dimensão, é a raiz de uma provocação fílmica. Duas amigas separadas pelos hemisférios norte e sul da América pretendem dançar no tumulto de imagens, violências, frustrações e desejos. Fazem-no através de um jogo onde o registro de si e das mulheres ao seu redor se transforma em um diálogo real e lúdico, como um encontro e um abraço decididos a resistir à distância.” 

É seguindo esta premissa que Fernanda Pessoa, pesquisadora do cinema experimental latino americano feito por mulheres e diretora dos documentários Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava (2017) e Zona Árida (2019), e Chica Barbosa, diretora de cinema experimental queer responsável pelo premiado curta-metragem La Flaca (2018), compartilham com o público um documentário que une uma série de vídeo-cartas trocadas por elas durante o período de pandemia do COVID-19. A troca destas cartas surge como um antídoto para a comunicação virtual engessada que vivenciamos durante este período de isolamento social e de um desejo de documentar aquele momento da história mundial. 

Cada carta é inspirada estética e conceitualmente por um nome listado no livro “Women’s Experimental Cinema”. O livro contém 16 artigos sobre a obra de cineastas femininas do audiovisual experimental. Apesar deste ser o objeto da pesquisa das diretoras, elas tomaram a liberdade de trocar quatro nomes da lista e essa decisão não poderia ser mais assertiva. Se tratando de um projeto marcado por uma pluralidade de identidades latinas tão forte e expressiva, seria ideologicamente contraditório seguir na hegemonia norte-americana e branca do livro. É interessante observar que mesmo seguindo o trabalho destas mulheres marcantes, ambas as diretoras conseguem imprimir muito bem suas personalidades. Chica traz uma dramaticidade visual, sonora e textual mais teatral, poética, para suas cartas enquanto Fernanda trabalha suas emoções com uma delicadeza e pitadas de humor sem perder a densidade dos temas que aborda. Essas particularidades das diretoras dialogam muito bem em conjunto, especialmente com um trabalho de montagem e edição e mixagem de som tão fluido e coeso feito por elas com auxílio de Tiago Bello.

O documentário inicia com uma ótica introspectiva, externando reflexões pessoais sobre este momento de exílio e desconexões, sobre o olhar para si mesma e anseios com o futuro. Apesar desta primeira camada do filme ter este enfoque pessoal ele também introduz seus principais temas: Conservadorismo político, negacionismo, democracia, sororidade e ancestralidade. Estes pontos assumem protagonismo da narrativa de maneira muito natural ao decorrer das cartas que acompanham as manifestações populares e acontecimentos políticos que acontecem no Brasil e em Los Angeles. De maneira clara pelas conversas de Chica e Fernanda e também de forma sutil são traçados paralelos entre os desgovernos de Donald Trump e Bolsonaro, especialmente quanto às medidas criminosas e de extrema irresponsabilidade tomadas por eles sobre a pandemia, e toda a articulação dos povos durante seus respectivos períodos eleitorais para impedir que eles continuassem em posição de poder. 

Toda essa trajetória é atravessada por questões de gênero, denunciando as violências sofridas por nós mulheres e como encontramos apoio e força entre nós. A sororidade não é retratada de maneira idealizada e higienizada, mas com muita honestidade com seus pontos fortes e fracos e muito tato quanto aos recortes de raça, classe e transgeneridade. A obra nos conduz nessa jornada dolorosa trazendo gradualmente uma mensagem de esperança e coletividade. Nós descobrimos junto com elas essa esperança, essa luz no fim do túnel. É perceptível ao fim do documentário como essas vivências e construções coletivas as transformaram pessoalmente. Porém esta transformação não ocorreu apenas em uma esfera pessoal, mas também profissional.

“Existe agora uma vontade de continuar explorando a liberação feminista através de filmes, não somente pelos temas tratados mas também pela forma e experimentação cinematográfica, como uma liberdade formal simbiótica. Precisei explorar e compreender as nossas subjetividades para realmente atravessar as fronteiras que tanto tememos. Agora a vontade é de continuar engolindo Hollywood, fazendo um cinema de risco, feminista, latino, coletivo e imigrante” disse Chica em entrevista sobre o documentário.  

“Com a pesquisa que eu e a Chica fizemos juntas, e a descoberta da falta de bibliografias e materiais sobre as mulheres latinas do experimental, decidi me aprofundar nesse caminho. Já no âmbito pessoal, além de reforçar minha amizade e admiração pela Chica, me fez buscar mais comunidade entre mulheres. Um dos assuntos principais do filme é a amizade entre mulheres, que é uma coisa mal falada na nossa sociedade patriarcal, que diz que as mulheres devem competir entre si, ser rivais ou que não existe amizade verdadeira entre mulheres.” afirmou Fernanda

Assistir a esta obra documental me fez encarar um exercício interessante de perspectiva de presente e (não tão distante) passado. Temos um senso de urgência tão aflorado que queremos que as mudanças sejam realizadas aqui e agora. Neste ritmo esquecemos que estas mudanças, principalmente as estruturais, acontecem gradualmente. Assistir a essa retrospectiva do ano de 2020 me fez lembrar que já estivemos em um cenário de pura desesperança e o quanto já avançamos. Claro, não quero alimentar uma visão ingênua e utópica de que está tudo bem, pois ainda não está, mas sem dúvidas já esteve pior e as nossas lutas, individuais e coletivas, não foram em vão. 

“Me movo numa dança entre nós, no nosso próprio ritmo, entre tanta morte e violência” – Vai e Vem (Dir. Chica Barbosa e Fernanda Pessoa, 2023)


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