RESENHA | Gótico Nordestino, de Cristiano Aguiar

“A dor, a ansiedade e o medo escorriam de tal forma através do corpo das três fêmeas que um laço invisível as comprometia num enredo novo, um enredo tecido numa língua desconhecida, porém profunda.”

A primeira vista você pode achar que Gótico Nordestino (Ed. Alfagara, 2022) se trata de um livro mais técnico discorrendo sobre o seu título. E poderia ser, se tratando da vasta pesquisa que o autor paraibano Cristiano Aguiar percorre sobre a ficção latino-americana, brasileira e regional na sua trajetória acadêmica. Mas não julgue o livro pela capa (aliás, uma bela capa com arte do armorial Gilvan Samico). Gótico Nordestino é uma antologia com nove contos que dispensa qualquer prefácio diante da qualidade literária que possui. Histórias se apresentam quando os leitores as começam.

Com um prosaico rico, com descrições chamativas, mas não dependentes de si, a narrativa de Cristiano Aguiar intensifica muitos elementos existentes nos emblemáticos signos nordestinos herdados de outrora, contudo deixando claro que cada narrativa é produto do seu tempo, das suas influências e a forte mistura que faz a nossa região ser vasta de possibilidades de histórias. E que o Nordeste não está apartada do mundo. Faz parte do mundo, com sombras e estranhezas do terror e horror.

São nessas possibilidades sombrias que as histórias tomam forma. Encontramos distopia dominada por onças, um dos símbolos mais fortes da identidade nordestina, entre homens degolados sob o Sol e da Noite, umas caetanas que carregam o prenúncio do último ofício da vida: a morte. Reflexões sobre uma pós-vida numa quase antivida em Lázaros levantando de suas pandemias. Ou mulheres molhadas e noivas que entram em nossas mentes por maldições e fascínios. E sobre fascínios, as críticas da sociedade atual, fanática pelo banal enquanto outras querem afastar-se do comum olhar que torna tudo tão costumeiramente incomum. Além de figuras míticas conhecidas da nossa cultura popular. 

Acredito que os maiores méritos da escrita na obra de Cristiano Aguiar sejam a capacidade dele: 1) Interpretar o Nordeste resultado do Atual sem desmerecer toda a formação arcaica, sendo esse o pilar de concreto em todas suas histórias; 2) Entender o gênero proposto na sua escala literária global e adaptá-la em histórias que ao lermos sentimos que elas sempre existiram regionalmente entre nós; 3) Enxergar as histórias nordestinas como histórias regionais e mundiais. Já dizia Ariano Suassuna que as grandes histórias mundiais são essencialmente locais e abraçam o mundo diante da quantidade de amor depositada nelas; 4) Explorar o deslumbramento do aterrorizante em todas as esferas, seja no grandioso, no invisível, no novo e antigo, no incomum a mim ou típico ao outro. Nelas, a ênfase na ótica particular de seus protagonistas/personagens principais, oferecendo medos personalizados.

Ao mesmo tempo, Gótico Nordestino para sê-lo, dispensa algumas abrangências como a jocosidade ou o novelesco presentes na região para revesti-los com suas narrativas góticas. E isso torna a obra mais prazerosa: quando seu autor preocupa-se em contar a história diante da proposta da antologia, sua grande qualidade é saber o que vai dispensar. Gabriel Garcia Marquéz já ensinava sobre o valor do que é cortado e a sua influência no que será publicado/contado.

Por fim, que Gótico Nordestino é carregado de contos que comprimem e dilatam nossos medos num curso de fole em notas que tocam lugares rasos e profundos. Que venha encabeçar nas listas de melhores leituras do ano, pois certamente estará na lista deste que vos escreve.


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