Halloween Kills: O Terror Continua – O que acontece quando o Estado falha?

Por mais que tentem “matar” os filmes de terror slasher, eles parecem ter os mesmos dons que seus icônicos vilões: ano após ano continuam ressuscitando e voltam às telas para causar, às vezes medo, outras vezes tédio e, na maioria delas, antipatia na audiência. Mas, inesperadamente, alguns desses filmes podem servir como ferramenta para nos trazer reflexões. Em Halloween Kills: O Terror Continua (Halloween Kills, 2021) é provável que você vivencie muitas dessas sensações.

Dirigido por David Gordon Green, que também trabalhou no predecessor Halloween (2018) e em Joe (2013),  Halloween Kills não quis fazer do seu título uma mera referência. Dessa vez Michael Myers – interpretado pelos atores Nick Castle e James Jude Courtney – promove um verdadeiro massacre na cidade de Haddonfield, deixando um rio de sangue como rastro (provavelmente uma das maiores contagens de mortos dos filmes da franquia). Então, se é de violência que você gosta, nesse quesito o thriller não decepciona. Mas podemos ir um pouco além.

Segundo filme do que se prevê como uma trilogia, aqui acompanhamos novamente Jamie Lee Curtis repetindo o papel de Laurie Strode, irmã de Michael, logo após explodir sua casa com o assassino preso lá dentro. Tendo sobrevivido à explosão, o mascarado retoma seu caminho matando todos que encontra.

Diferente dos seus predecessores, neste filme toda a cidade entra em pânico ao se dar conta que o “bicho-papão” está de volta, exatamente 40 anos depois de ter colocado a comunidade no mapa do terror (lembre-se que a história se passa em 2018). Assim, personagens há muito esquecidos pelo público retornam, decididos a pôr fim nos traumas acumulados ao longo da vida por causa da fatídica noite em que um homem com sérios problemas psiquiátricos fugiu de um manicômio e matou 4 adolescentes.

É difícil dizer se seria possível levantar um debate sobre o tratamento que pessoas neuroatípicas recebem de uma parte da sociedade ou, pelo menos, recebiam no final dos anos 1970, quando era comum jogar indivíduos que precisavam de tratamento psicológico em “depósitos” de humanos, junto de todos aqueles que não conseguiam se encaixar psicologicamente no meio coletivo. Não apenas o assassino de babás Michael Myers era visto com uma espécie de monstro pela cidade, mas todos os indivíduos que fugiram, na noite de halloween, do sanatório onde estavam internados.

E é tão comum que essas pessoas percam sua humanidade (e individualidade) que todos os fugitivos poderiam ser confundidos com Myers. Michael não tem rosto: ele é uma figura indefinida com uma máscara que simula uma face – de uma pessoa, não de um monstro, ou de um demônio, ou de um jogador de hóquei, mas de uma pessoa. Ele pode ser qualquer um. E é isso que a gente descobre na sequência de 2021.

No filme que estreia este ano, embora teimemos em colocar o assassino como a figura principal, o ponto central está no discurso provocado pelos sobreviventes da chacina de 1978. Decididos a não sentirem mais medo, a população de Haddonfield é guiada por uma sede de vingança disfarçada de justiça que põe em risco a vida de todos os envolvidos. Desde adolescentes e pessoas feridas, até pacientes que precisam de tratamento psicológico.

A população já não confia mais à polícia a segurança de suas casas. Elas mesmas declaram a falência do Estado em protegê-las, em duas falas iguais, cruciais para a trama. Uma dirigida ao xerife da cidade, quando tenta tomar o controle da situação – berrando que ele mesmo é a lei; e a outra dita por Laurie à sua filha, Karen (Judy Greer), quando esta tenta alertar a mãe que há pessoas treinadas para lutar contra este tipo de situação: “Estas pessoas falharam!” – diz Laurie. 

Além do massacre provocado pelo próprio Michael, assistimos a cenas de linchamento. Sentindo um estremo calafrio em uma delas e, talvez (ênfase no “talvez”), prazer em outra. Guiados pelo mantra “O mal morre esta noite”, os cidadãos da cidade partem em uma espécie de surto coletivo para uma caçada furiosa que pode matar até os mais inocentes. David achou uma forma intrigante – não consigo dizer o quão efetiva – de nos fazer essa provocação: até onde temos o poder de punir? E o que isso nos torna?

Entre facadas, tiros e as mais criativas formas de assassinato, os diálogos de Halloween Kills mostram ao espectador não apenas que Michael Myers pode ser qualquer um de nós, mas que qualquer um de nós pode se tornar um Michael Myers, desde que as condições certas sejam postas. É o que pode acontecer quando o Estado não provê aquilo a que se propõe: segurança, saúde, educação, moradia… É justamente este tipo de revolta que mais causa pânico em quem entende o poder que tem o senso de coletividade – e como ele pode sair do controle em situações extremas.

Há uma camada mais profunda em um filme de terror quando vemos cidadãos regulares carregando armas em busca de matar um “demônio comum”. Ainda mais quando o debate sobre armamento está tão pungente nos Estados Unidos. De fato, Michael Myers era um assassino em série. Talvez alguém com quem o Estado também tenha falhado quando ele também precisou de tratamento. Mas o quanto demoraria para que outros “demônios” fossem eleitos? E quanto prejuízo poderia ser causado se cada pai da família tivesse uma arma em suas mãos? Quantos Michaels perseguiríamos?

Por fim, o maior prejuízo do filme fica em seu desfecho, que precisava ter um gancho para emendar Halloween Ends, que está em pós-produção e tem sua estreia prevista para 2022. Uma fuga meio preguiçosa para explicar a insistência de Myers em permanecer vivo, mesmo depois de sofrer toda sorte de violência.

Então, se você conseguir se ater a mais do que a contagem de corpos, é bom prestar um pouco mais de atenção nas entrelinhas. O que faria de você um Michael Myers?


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