Manhãs de Setembro – O afeto no não afeto

Com uma protagonista de voz incrível e talento para atuação surpreendente, Manhãs de Setembro (2021 -) estreou recentemente na Amazon Prime Video. A história do seriado conta sobre a motogirl Cassandra (Liniker), que acabou de conquistar finalmente seu próprio lugar e descobre sobre a existência de um filho de um caso seu pré transição. 

Bem, primeiramente vamos apresentar a nossa protagonista, interpretada por uma incrível cantora brasileira e também atriz, Liniker. Cassandra não é uma mulher muito afetuosa e carinhosa, ao longo da temporada temos fortes sinais sobre como sua vida sempre a fez uma pessoa severa e, de muitas formas, solitária. Muitas vezes quando nos trazem personagens trans sofrendo transfobia temos medo, dor, paralisia, mas não com Cassandra. Aqui temos uma mulher muito capaz de se defender de violências transfóbicas sofridas. 

Ao longo da narrativa, a maior amiga e confidente de Cassandra é Vanuza, cantora da música do título da série. Somos acompanhados pela voz e pelos conselhos de Vanuza, que nem sempre são os melhores e mais sensatos. É interessante acompanhar a interação da protagonista com Vanuza, pois é através destas interações pelas quais temos maior perspectiva da verdadeira personalidade de Cassandra. Para as demais pessoas do enredo há apenas uma mulher forte, desaforada e com uma extrema ausência de empatia pelo próximo. 

Claro, isso torna um tanto difícil simpatizar com a personagem. Especialmente quando ela se recusa a demonstrar qualquer sinal de afeto ou compadecimento com os problemas alheios. É necessário relembrar de algo dito muitas vezes por Cassandra e Vanuza, sobre como ela, quando precisou resolver os seus problemas, o fez sozinha e lutou muito para chegar onde chegou. Então nossa personagem não quer abrir mão da conquista de sua solidão, do seu próprio lugar.

Por isso, a chegada de Gersinho (Gustavo Coelho) e sua mãe, Leide (Karine Teles) é algo capaz de abalar toda a vida de Cassandra. Especialmente pelo fato dos dois não terem casa e estarem morando num carro, mas também por Leide e Cassandra terem se envolvido antes da transição desta. O filho dos dois chama Cassandra recorrentemente de “pai” e isso obviamente gera um enorme desconforto para a personagem e também para a audiência, como deveria. Afinal, como pode uma mulher ser um “pai”?

Normalmente o elenco infantil de algumas obras pode ser um ponto muito fraco, mas no caso do seriado é um dos maiores acertos. Não apenas pelo brilhante Gustavo Coelho, vivendo de forma tão profunda e tridimensional os dramas de um jovem Gersinho, mas também por Izabella Ordoñez que interpreta a jovem Grazi. Os dois jovens são melhores amigos, e Grazi assume o papel de confidente e conselheira de Gersinho. A química das duas crianças funciona muito bem em tela, suas conversas são leves e cativantes para assistirmos.

É da relação de Cassandra e Gersinho que sai uma das maiores surpresas da série, pois os dois tem uma forte conexão, mesmo com a constante “recusa do chamado” por parte de Cassandra. Gersinho, por outro lado, busca durante quase todo o enredo se aproximar mais da figura de Cassandra e essa vontade dele nos entrega as melhores cenas da série. É simplesmente muito fofo a forma como o personagem de Gustavo Coelho tem sempre um brilho nos olhos de orgulho e admiração quando olhando a personagem de Liniker. 

Todo o elenco de apoio da série tem muito a agregar, não apenas por servirem uma função no enredo mas uma nova perspectiva. O casal gay formado por Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos) funciona muito bem para puxar o lado mais empático da personagem de Cassandra e serem tios amorosos do jovem Gersinho. Assim como é interessante de se ver e explorar a relação entre Cassandra e Ivaldo (Thomaz Aquino). O seriado também tem a ilustre participação da cantora Linn da Quebrada como Pedrita e Clodd Dias como Roberta – a segunda estando presente no enredo desde o primeiro episódio. 

A trama se move de maneira natural, não existem grandes acontecimentos, mas sim interações importantes e surpreendentes capazes de envolver a audiência. Manhãs de Setembro é um combo de audiovisual brasileiro com afinados trabalhos de atuação, um roteiro brilhante e um visual imagético bem próximo à poesia. A multiplicidade de vivências por trás do roteiro da série reside na incrível mesa de roteiristas composta por Josefina Trotta, Alice Marcone (também roteirista da série Todxs Nós) e Marcelo Montenegro.

Uma das partes mais envolventes da série é como ela explora a possibilidade por trás da vida, de nem sempre o que buscamos ser o que desejamos ou precisamos. Afinal, um dos elementos mais importantes da vida é exatamente como não importa o quanto planejamos, as coisas sempre virão surpresas no caminho. Nos resta compreender se estas surpresas são boas ou não. 


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