Guarani: A Terra Sem Mal – Essa guerra não é minha?

 

Um dos mais importantes acontecimentos da América do Sul – quiçá da América – foi a Guerra do Paraguai. Esse é o cenário de Guarani: A Terra Sem Mal, quadrinho realizado pelos argentinos Diego Agrimbau e Gabriel Ippóliti, que veio para o Brasil através da Comix Zone. Conta a história do jornalista e fotógrafo francês Pierre Duprat, que busca registrar as jovens ameríndias do povo Guarani e para isso precisa encarar o final da Guerra do Paraguai. E mesmo chegando ao final do conflito, Duprat é testemunha dos diversos lados do sangrento acontecimento.

É essa característica de testemunha ocular do protagonista e a busca pelo registro que faz Guarani uma HQ não só de guerra, mas uma ode à fotografia e ao fotojornalismo. E através do poder que uma câmera carrega, somos ajudantes de Duprat nessa jornada, destruindo o romantismo heroico da guerra. Se no filme Herói (Ying Xiong, 2002) há um ditado que fala “Em ambos os lados de uma batalha há um herói”, em Guarani podemos dizer que em ambos os lados há truculência, desumanidade, sobrevivência, horror, medo e covardia. Somos olheiros do orgulho exacerbado e perverso de um Paraguai já fadado à derrota e mesmo assim dá continuidade em dilacerar seu povo, de crianças à mulheres. Do outro lado, encontramos a aliança entre uruguaios, argentinos e brasileiros em vantagem bélica, mas tão cruel quanto, exercendo todo tipo de malignidade com seus inimigos.

Duprat não faz vista grossa em nenhum momento, mesmo sempre afirmando para si que aquela não era sua guerra. Mas nas esquivas ele mantém o foco no objetivo principal: o registro dos Guaranis. A busca etnográfica dos verdadeiros e agora reclusos donos daquelas terras e seu encantamento terreno em busca da “Terra Sem Males”. Vale destacar as palavras do historiador Eduardo Neumann:

“Para os guaranis a terra não é uma divindade, mas está impregnada de toda experiência religiosa. A terra, por sua vez, é o suporte, um meio para eles efetivarem a sua economia de reciprocidade. É através da terra que eles procuram atingir toda sua plenitude. Assim, em determinadas ocasiões, devido à manifestações do líderes espirituais, por seu tom profético e a busca por novas terras, alguns etnógrafos sentiram-se autorizados a firmarem que todo o pensamento dos guaranis estava orientado em torno da terra sem mal”.

(Os Guaranis e a Razão Gráfica: Cultura escrita, memória e identidade indígena nas reduções – Século XVII & XVIII. 2009)

O fotógrafo Duprat nos expõe a uma guerra não só com facetas desconhecidas, mas também profunda e cheia de lados. Não temos somente um conflito duplo do Paraguai vs Aliança Uruguaio-Platino-Brasileira, temos os povos submissos dentro de cada lado, constituindo outros lados. Encontramos povos indígenas, cada qual com suas intenções. No meio de todos os conflitos, a ponta de esperança fica com a “Terra Sem Males” e seus conceitos de perfeição moral. É no berço das raízes americanas que repousa uma luz no fim do túnel em forma de conceito.

No batalhão das testemunhas, cada olhar é um registro parcial que salva ou condena. “Essa guerra não é minha” é a escolha súbita pela sanguinolência.


VEJA TAMBÉM

I-Juca Pirama – A quadrinização de uma obra essencial da literatura brasileira

Angola Janga – Quilombo, insurgência e afeto no traço de Marcelo D’Salete