Querido leitor, antes de começar essa resenha sobre Relatos do Mundo (News of the World, 2021), obra adaptada para o cinema pelo diretor Paul Greengrass e produzido pela Netflix, gostaria de trazer um pedido de desculpas, pois imagino que a essa altura você já deve ter visto o filme e lido (caso foi do seu interesse), diversas resenhas.
Mas estou tomando por hábito (creio que pelo tempo que estamos a passar dentro de nossas casas) de, após ver um filme com origem em uma adaptação literária, ir em busca de ler a obra, antes de sair escrevendo sobre o mesmo. Não que seja realmente necessário fazer isso, mas dessa forma não caio no espaço de apenas reproduzir meus sentimentos sobre o que vi, sem me aprofundar.
Bem, fiz a leitura de “News of the World”, da autora Paulette Jiles, e realmente só somou às minhas sensações. O diretor Paul Greengrass – de Vôo United 93 (United 93, 2006) e Capitão Phillips (Captain Phillips, 2013), sendo esse último seu primeiro contato com Tom Hanks -, em linhas gerais, fez poucas alterações no texto original, que, em resumo, nos apresenta a historia do Capitão Kidd, (Hanks), um veterano da guerra civil americana, findada em 1865. Mas, mesmo já tendo se passado alguns anos, ele decide nunca regressar a sua casa, pois, para ele já não existe a sensação de pertencimento ou de lar.
Partindo assim para uma vida itinerante, indo de cidadezinha a cidadezinha no Texas, ganhando a vida a ler as notícias do resto do país nos vilarejos ao valor de dez centavos de dólar por pessoa. Se apresentando com um misto de informação e teatro. Quase como um precursor de um comunicador social, ou um radialista. No entanto, as performances do Capitão são alteradas pelo encontro com Johanna, personagem da jovem atriz alemã Helena Zengel, que causou grande impacto no cinema alemão em 2019, rendem-lhe o Prêmio Alemão do Cinema por Transtorno Explosivo (Systemsprenger, 2019), de Nora Fingscheidt, e que aqui se confirma como uma estrela em ascensão.
A partir desse encontro, ele passa a ter a incumbência (mesmo contra sua vontade) de escoltá-la até seus últimos familiares vivos. A menina havia sido levada pelo povo Kiowa (tribo indígena americana) anos atrás, após sua família ser violentamente morta, mas agora está sendo devolvida a seus parentes – uma tia e um tio alemães – após um confronto brutal em sua tribo adotiva. Transformando Johanna em uma “criança órfã duas vezes”, diz a personagem Sra. Gannett (Elizabeth Marvel), que os interpela na historia.
Esse é um primeiro panorama de Relatos do Mundo, onde um ex-combatente de guerra solitário, andarilho e que perdeu os vínculos emocionais com seu passado, se vê unido a uma menina de 10 anos, órfã, que se reconhece como membro Kiowa e possui zero lembranças de sua origem.
Vale ressaltar que, o abandono de Johanna pelos indígenas se dá pelo fato de que tribos que adotavam crianças brancas eram alvo mais evidentes pelo exercito, que haviam perdido grandes ocupações de terra desde o final da guerra civil. Por isso, a entrega da menina não foi algo movido por falta de laços afetivos, mas sim por uma questão de sobrevivência para ambas as partes.
A partir daqui, vemos que a aridez que se espera de um faroeste vai se cambiando em uma trama emocional, o que se torna um feito quase impossível, visto que estamos lidando com um ator como Hanks, que transborda empatia e uma doçura com sua presença em qualquer tela. Creio que esse possa ser o único impasse para um distanciamento real entre o ator (Hanks) com seu enorme carisma e a falta de surpresa que o publico sente. Afinal, o excesso de segurança paternal que é transmitido por Tom Hanks á menina é algo que o expectador não só espera, como já sabe que vai receber. Fato esse que no livro sente-se de forma menos previsível, e vai nos levando a crer que essa relação tem poucas chances de vingar.
Temos os cenários arenosos, os cafajestes querendo abusar de um corpo infantil, as trocas de tiros e tudo mais que compõem um western americano. Porém, o que mais salta aos olhos é o momento, mesmo que esperado por todos, onde a intercessão nasce entre os personagens principais.
Mesmo que previsto, aquece o coração ver a menina cantar uma canção indígena sobre a vitória de Kidd contra os malfeitores que lhe queriam capturá-la, ao mesmo tempo em que carimba as mortes deles no cavalo do capitão com o barro e suas mãos. A troca de palavras entre eles, as coisas místicas do universo de Johanna, e o interesse em ver como Kidd domina sua plateia apenas com as palavras, são coisas que não podem ser menosprezadas pelo espectador.
Tanto é o poder que existe na sutilezas das palavras que, mesmo que se espere aspereza, como nas cenas em uma vila de homens que esfolam o couro de búfalos e que, mesmo sob toda a opressão que vivem, escolhem serem reconfortados por uma relato heroico, lido por Kidd, sobre pessoas que venceram uma adversidade, no lugar de ouvir mais do mesmo, com os relatos manipulados para vangloriar o “dono do vilarejo”. A escolha pelo nome “Relatos do Mundo”, refere-se não somente as informações transmitidas pelo capitão às pessoas mais remotas, mas trata-se também sobre enfatizar os relatos de um mundo que está desaparecendo, avançando e se remodelando, criando novas oportunidades. Tanto é que um dos moradores até decide partir de lá em busca de algo melhor, apenas por ouvir relatos de algo diferente de sua realidade.
Então, por fim, vemos a mudança de três mundos: a de um homem vazio (Kidd); de uma criança a busca de uma nova identidade (Zengel); e do próprio mundo em si, após uma guerra devastadora. Como opinião dessa que vos escreve, me senti acalentada por essa mudança, pela transformação da dureza em afeto e mais, por sentir que algo doce foi gotejado em mais uma tarde de pandemia de um ano que parece não mudar. Indico, não por te trazer surpresas, mas por te trazer uma sensação de paz. E também por acreditar que palavras podem ser inspiradoras, caso contrário eu não escreveria e nem lia resenhas.
Caso você tenha achado muito fantasiosa a historia de uma filha de imigrantes alemã ter sido captura e criada por uma tribo de indígenas americanos, eis abaixo fatos reais que constam sobre os relatos desse mundo, obtidos em pesquisa na historia americana:
- Há registros de crianças americanas, de imigrantes europeus que estavam tentando se estabelecer nos Estados Unidos, de mexicanos, de africanos que foram capturadas pelas tribos das planícies (os Comanches, os Apaches. os kiowas e outros)
- Os ataques eram muito violentos, e a trilha de fuga rumo a um lugar seguro para a tribo, muitas vezes, duravam dias, sem parar para o descanso, a alimentação ou a hidratação, o que levava as crianças capturadas a morrerem pelo caminho
- Porém, as que sobreviviam e eram adotadas pela tribo, em questão de meses criavam uma relação de afeto e identificação tão forte que esqueciam suas origens. E tanto na tribo, quanto para a criança não havia diferenciações. Todos eram uma nova família
- Há maioria dos relatos dos que regressaram a vida dos brancos, quase todos foram forçados a isso. E muitos fugiam de volta para suas antigas tribos.
- Para os brancos essas pessoas eram conhecidas como “índios brancos”. Porém, para os indígenas, eram família.
- O registro mais famoso é o de Olive Oatman, de origem mórmon, que foi levada pela tribo Comanche , e depois viveu entre os Mojavis, chegando ate a receber ornamentos de sua tribo em forma de tatuagens no seu rosto. O caso dela, inspirou uma personagem na série Hell on Wheels (2011 – 2016).
- Outro registro famoso vem de Herman Lehmann, que assumiu sua adoção com a tribo, ao ponto de lutar contra os brancos em confrontos. Nunca se conformou por ter sido devolvido ao mundo dos brancos e morreu se autodeclarando como Apache.
- Outras obras audiovisuais que retratam esse tema: O Pequeno Grande Homem (Little Big Man, 1970), com Dustin Hoffman e Dança com Lobos (Dances with Wolves, 1990), com Kevin Costner.
- Todas essas informações acima foram pesquisadas no livro: The Captured: A True Story of Abduction by Indians on the Texas Frontier – O mesmo livro, em que a autora Paulette Jiles, se inspirou para criar a personagem de Johanna.
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Pisciana, web-jornalista, filósofa, social media, editora, aspirante à mochileira, dramaturga, maquiadora de efeitos especiais e viciada em fazer monografias. Sabe fazer malabares com objetos, mas joga bem melhor com as palavras. Detesta vestir roupa, filmes redublados e não pode comer abacaxi, mas adoraria.