Sob o Sol do Oeste – A subversão do faroeste romântico

Há spoiles do filme.

Meses atrás assisti a um filme chamado Pistoleiro do Entardecer (Ride the High Country, 1962), dirigido por Sam Peckinpah, e estrelados pelos lendários Joel McCrea e Randolph Scott, ambos já no fim de suas longas carreiras como cowboys do faroeste americano. No filme os dois são encarregados de transportar uma carga de ouro de uma mina nas montanhas e partem em uma jornada com o jovem e inconsequente Heck (Ron Starr). No caminho eles recebem a missão de escoltar a bela Elsa (Mariette Hartley), filha de um fazendeiro que está prometida para um dos mineiros na montanha para onde estão indo. Fora a violência exacerbada típica do diretor o filme não tem nada de muito novo a meu ver, e a moça acaba servindo quase como um objeto a ser protegido, causando mais problemas aos “heróis” do que qualquer outra coisa. Esse foi só um filme que me lembrei de imediato ao pensar no papel das mulheres no gênero western, mas podemos destacar inúmeros onde elas não passam de cortesãs nos Saloons ou filhas de fazendeiros e donzelas, aguardando o intrépido herói do Velho Oeste para salvá-la dos vários perigos que ali espreitam. As exceções, como Johnny Guitar (1954), podem-se contar nos dedos, e o fato é que o western é um gênero desde sempre pautado no machismo mais do que qualquer outro, ampliando a ideia de uma virilidade masculina em contraponto à fragilidade das mulheres neste universo tão hostil.

Mas felizmente, uma das características de todos os gêneros cinematográficos – até dos mais resistentes – é sua capacidade de transformação conforme o contexto social de cada época. Obviamente que vários fatores influenciam para esta transformação, sejam econômicos, políticos ou simplesmente adequação ética e moral, mas ela sempre ocorre. No caso do western essa transformação é bem visível, apesar do franco declínio do gênero nos últimos 40 anos. Em todo caso, uma leve retomada nos anos 1990, com Dança Com Lobos (Dances with Wolves, 1990) e Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992), veio para afirmar a continuidade destes filmes, mesmo que com muito menos força do que em seus anos dourados. Desde lá alguns filmes foram produzidos, entre remakes e readaptações de histórias de grandes lendas, e entre várias mudanças de perspectiva e releituras deste período tão caro ao povo estadunidense, uma das transformações que pudemos observar é o singular avanço nos papéis femininos nestas produções.

Já no início dos anos 2000 tivemos o dramático Desaparecidas (The Missing, 2003), e em 2010 podemos destacar o excelente O Atalho (Meek’s Cutoff) – inclusive dirigido por uma mulher, Kelly Reichardt, algo incomum para o gênero -, Dívida de Honra (The Homesman) e Um Refúgio (The Keeping Room) em 2014, e no ano seguinte uma tentativa – um pouco frustrada, eu diria – de Gavin O’Connor em emplacar uma inversão de papéis entre mocinha em perigo e anti-herói com Em Busca de Justiça (Jane Got a Gun, 2015), só para citar alguns exemplos que lembrei de imediato. Em 2018 tivemos três lançamentos de destaque no gênero, todos com uma pegada puxada para um humor irônico e com várias referências aos clichês do gênero. O primeiro foi o divertido Os Irmãos Sisters (The Sisters Brothers), de Jacques Audiard, seguido de A Balada de Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs), a pitoresca homenagem dos Irmãos Coen ao gênero, e por último, o filme em questão neste texto, Sob o Sol do Oeste (Damsel), “Donzela” na tradução literal do título.

Os irmãos David e Nathan Zellner, responsáveis por roteiro e direção do filme, nunca foram lá muito conhecidos, sendo sua obra de mais destaque até então o longa Kumiko, a Caçadora de Tesouros (Kumiko, the Treasure Hunter, 2014) (filme que eu amo imensamente por vários motivos que em outra oportunidade contarei aqui), mas em Damsel conseguiram chamar um pouco mais de atenção com a presença de dois atores emergentes em Hollywood, Robert Pattinson e Mia Wasikowska. O filme inicia com uma estranha sequência introdutória,  logo depois somos apresentados a Samuel Alabaster (Pattinson), uma inusitada figura portando um violão às costas e puxando um pequeno pônei, que chega a uma daquelas pequenas cidades clássicas de faroestes em busca de um pastor com quem havia se correspondido anteriormente e contratado para uma “missão”. Após encontrar o homem bêbado e caído em uma praia os dois partem nesta jornada misteriosa.

No caminho o pastor Henry (interpretado pelo próprio David Zellner, que está ótimo, diga-se de passagem), que na verdade percebemos ser o homem da introdução do filme e não o verdadeiro pastor, descobre que Samuel o levava para o resgate de sua amada, que havia sido sequestrada tempos antes por malfeitores e que o mesmo pretendia, logo em seguida, casar-se com a donzela, cerimônia que o suposto pastor celebraria. Desde o início é perceptível que Samuel não é nenhum cowboy destemido e o próprio filme deixa isto claro quando o vemos ser ridicularizado no bar. De um modo geral toda a caracterização do ambiente é caricatural, fechando com a cena de um peculiar enforcamento.

Toda a primeira metade do filme se dá na jornada dos dois em direção ao valioso resgate, e acompanhamos cada passo e diálogo com uma notória estranheza, um tipo de humor sutil que se dá nos pequenos detalhes e de forma não muito escrachada. O percurso dá direito a belas paisagens características do gênero, uma perseguição inesperada e até uma cantoria na beira de uma fogueira a noite, mas é ao chegarem no local desejado que o filme dá a verdadeira virada. Penelope (Mia Wasikowska), a tal bela donzela em perigo, não havia sido sequestrada coisa nenhuma, mas sim ido de bom grado viver longe da civilização com seu grande amor, o bandido Anton Cornell (Gabe Casdorph).

Neste momento nos deparamos com a quebra de um dos maiores paradigmas do faroeste. Enquanto o, até então, protagonista da história se revela apenas um homem que não consegue aceitar uma desilusão amorosa, a donzela, que a partir deste momento toma o protagonismo do filme para si, se mostra uma mulher forte e decidida, sensível quando necessário, mas sempre atenta a seus princípios e vigilante pela sua sobrevivência sem necessitar de nenhuma ajuda. Todo e qualquer rastro de romantismo que o espectador poderia esperar daquela história se esvai (e aqui não falo do amor romântico, mas de uma idealização perfeita), e até seu desfecho lidamos com a crueza de uma mulher que perdeu seu grande amor e com a culpa do homem que o assassinou.

Sob o Sol do Oeste (um título horrivelmente genérico) trata de forma simples da subversão de algo que não está restrito apenas ao western, mas acompanha a humanidade desde muito tempo, da pressuposta fragilidade e da disponibilidade à submissão do gênero feminino, algo culturalmente e historicamente construído para condenar as mulheres a uma posição abaixo dos homens. Isso é reforçado desde muito tempo até hoje por todas as histórias de princesas de fantasia, frágeis e lindas mulheres em filmes de terror, seja na Mitologia Grega, seja nos cânticos medievais, seja nas poderosas mãos de um gorila gigantesco. Então é ótimo perceber que a donzela em perigo está saindo cada vez mais da moda, dando lugar a personagens femininas fortes e não mais sexualizadas. Mas é uma luta dura e está só começando.


A Balada de Buster Scruggs – Um estiloso tributo ao faroeste

O Faroeste Moral de William A. Wellman