Cidade Invisível – Tão brasileira quanto a bandeira dos EUA

A proposta de Cidade Invisível (2021), lançado pela Netflix, com roteiro assinado por Raphael Draccon e Caroline Munhóz, e produção de Carlos Saldanha, é sobre uma trama que envolve seres do nosso folclore brasileiro, como se somente essa transposição de abecedário fosse necessária para que a obra carregasse a brasilidade que tanto entoam no discurso de divulgação. Caindo nessa armadilha, a série é tudo, menos “brasileira”.

A série começa com a antropóloga Gabriela Alves (Julia Konrad) numa festa junina com sua filha. Ao iniciar um misterioso incêndio (não sei porque seria “misterioso”, já que tal festa junina é promovida dentro de uma mata quase fechada por copa de árvores, um atípico ambiente para colocar luzes e fogueiras, diferente das habituais clareiras e espaços juninos pelo Brasil), Gabriela procura a filha e acaba morrendo, causando traumas no policial ambiental Eric (Marco Pigossi), o protagonista da série. É através de sua ótica que a história se desenvolve, entre Botos e Curupiras.

Interessante notar esse protagonismo: Eric é o típico homem branco urbano, que sua construção precisa ser revestida de um certo “poder de polícia” mesmo ambiental. É nessa posição urbana que ele protagoniza a investigação, a salvação e o combate no campo rural. Não difere muito do homem branco colonizador vindo do Urbano que, para adentrar no Brasil Amazônico e Sertânico, precisava se titular nas histórias como “O Bem”, para livrar da “selvageria” dos não-urbanos, os rurais e suas crenças, sejam como vilões ou salvados.

Muitas histórias do Brasil são contadas erroneamente desse ponto de vista, como o próprio Ariano Suassuna – um dos maiores intérpretes da cultura brasileira – relata que João Pessoa (assassino de seu pai) tinha costume de colocar o Urbano como o Bem e o Rural como o Mal. Desse modo, Ariano, em suas obras, fazia o contrário como forma compensatória: suas histórias mostravam um benéfico e minoritário Rural, com lindas tradições, sempre resistindo aos malefícios de muitos Urbanos, com suas imposições e massacres.

Essa abordagem de protagonismo em Cidade Invisível também não difere do mocinho estadunidense dos filmes de faroeste, que adentram Califórnia e Texas como grandes heróis, invadindo e massacrando os nativos ameríndios de seus costumes e terras. Sem contar os preconceitos raciais contra esses mesmos e também contra negros e asiáticos.

Temos então uma série com um protagonista que nada difere do policial estadunidense do bang-bang urbano, dentro de um cenário de delegacia que imita até as cortinas de Gotham City e Hell’s Kitchen. O olhar não é o nosso, e sim do invasor, que alcança sucesso usando nossos ombros de muleta.

Outro ponto onde a série não consegue se desvencilhar do olhar norte-americano é a visão da nossa cidade maravilhosa, Rio de Janeiro. A impressão que temos é que para mostrar-se “brasileira” não é possível fazê-lo sem mostrar o Corcovado e o Pão de Açúcar. Há um desafio do estrangeiro em identificar o Brasil além dos belos pontos turísticos do Rio de Janeiro, e isso é uma problemática que segue desde os tempos de Zé Carioca e 007. Mais cômodo? Pode ser. É na bela e singular cidade que os muitos personagens – quase cosplays dos apresentados na série Deuses Americanos (American Gods, 2017 -) – desfilam e se escondem.

Não vou adentrar muito nas escritas de Draccon e Munhoz. Diálogos artificiais, como os já esperados de Draccon, tanto na literatura maçante de Dragões de Éter, quanto os arrastados Supermax (2016) e O Escolhido (2019 -). Uma bibliografia de pesquisa que esquece os maiores folcloristas brasileiros, como Câmara Cascudo e Mário de Andrade, se torna um desafio para a experiência de Saldanha no mercado de Hollywood, mas são prejudicados com uma edição mais apressada que a comum na televisão. Montagem e edição são processos de criação e merecem uma identidade tal qual roteiro e direção. Cidade Invisível e sua equipe de cinco editores, pode ser o problema para os caóticos e atemporais cortes.

Agora, o ponto mais crítico que esse que vos escreve observou foi o aspecto audiovisual em si. É incrível que o padrão brasileiro de qualidade para muitos hoje em dia seja o padrão fílmico de Hollywood. Se a proposta é uma série sobre nós, sobre nosso folclore e sobre o (e ambientada no) Brasil, porque ela é tão parecida com qualquer produção média estadunidense? Será por que queremos ser mais estadunidenses quanto o estadunidense nativo, diante de toda a invasão cinematográfica de lá pra cá?

Até 31 de Janeiro de 2020, a sede Latina-Americana da Netflix era em São Paulo. Por que a rubra empresa mudou-se para o México, sendo que o Brasil é o segundo país com maior volume de assinantes e o terceiro mais lucrativo para a empresa? Se temos essa representação nos quadros empresariais da Netflix, por que não termos em troca obras que exprimem nosso rosto cinematográfico que carregam uma história de brasilidade e cinema das identidades plurais do país? Muitas vezes o segredo não está ‘no Que colocar’, mas na ‘rorma Como colocar’.

No máximo, é entendível uma tentativa de antropofagismo como solução de se livrar das amarras dos formatos norte-americanos já sólidos para sobressair um pouco de nossa cultura. Mas o que acontece na série é o contrário: é o alimento que nos devora e toda identidade cultural se resume ao sopro dos farelos.

Cineastas como os cearenses Petrus Cariry, Bárbara Cariry, Rosembergy Cariry, Pedro Diógenes tem seus Barcos e Pajeús mais folclóricos quanto os pausterizados produtos de estética norte-americana. Canto dos Ossos (2020), de Petrus de Bairros e Jorge Polo, vai além do vampírico e buscam, entre periferia, Urbano e rural, elementos folclóricos como a nossa lenda indígena dos Cupendiepes. Infelizmente, para muitos, tais filmes são vistos como “alternativos” enquanto algumas formas de bolos estadunidenses se tornam régua para “qualidade”.

Cidade Invisível parece um episódio de MasterChef onde o desafio é trazer uma bela feijoada, mas o participante acaba entregando um prato com contáveis caroços de feijão dentro de um caldo com cream cheese do Mc Donald. Gostoso? Não sei. Mas Feijoada não é.

Nada de novo sob esse sol.


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