O Barco – Um litoral ancestral inquieto

“O barco surgiu de uma expectativa. Sua arquitetura lembrava a caligrafia feita com cuidado”. É nessa frase que reside a história de O Barco (2018), escrita em forma de conto por Carlos Emílio Corrêa Lima e adaptada para o cinema por Petrus Cariry.

Numa história litorânea, onde pescadores não adentram ao mar além de suas margens, encontramos personagens enigmáticos que se completam e esvaziam-se durante as sensações do filme. Esmerina (Verônica Cavalcanti) é mãe de 26 filhos, todos recebendo como nome uma das letras do alfabeto. A distendida rotina é quebrada com a chegada misteriosa da náufraga Ana (Samya De Lavor). Com isso, somos levados as dúvidas do Filho A (Rômulo Braga), não só com a estranha, mas sobre o tal barco em construção, levantando questões e ansiedades.

O filme de Petrus carrega e transporta em imagens a poética da riqueza das palavras de Carlos Emílio, este que considero um dos maiores escritores cearenses da atualidade, de um vocabulário primoroso que sempre faz jus a história da literatura cearense no país. É nessa primeira vista, antes de qualquer desenvolvimento, que já nos convencemos em reencontrar a marcante fotografia de Petrus que aproveita cada pedaço da maior ferramenta que um experiente diretor de fotografia pode ter: a luz natural. E a magia da escuridão também o acompanha, disputando com as águas quem engole mais.

Petrus Cariry e Sérgio Silveira (direção de arte) transformam a bela Praia das Fontes num ambiente fantástico como se fosse um Litoral Ancestral e ao mesmo tempo atemporal. Seus personagens oraculares, cada um diferente em suas performances na história. É através da observação da posição dos filhos na história que Esmerina forma suas sílabas e palavras quase numa arte divinatória intrínseca, fazendo do alfabeto seus búzios e runas. O velho eremita cego (Everaldo Pontes), calejado pelo sal do mar de outrora, hoje senta e observa analiticamente em falésias firmes o desandar dos acontecimentos. Ana, a forasteira, dança e usa da oralidade para contar de passados longínquos, que se confundem com a imaginação das histórias de pescador.

O conceito que trago aqui de Litoral Ancestral como lugar quase mágico, com sabedoria assentada, tem semelhanças com os conceitos de Deserto-Floresta descritos pelo historiador Jacques Le Goff. Diante da pluralidade no mundo que nós espectadores conhecemos, ao avistarmos um deserto remetemo-nos a solidão dos eremitas e perdidos; das tentações e provações como Satanás a Jesus, o tédio existencial e metafísico. Na Floresta, geograficamente oposta ao deserto, mas não menos parecida: Giona di Bobbio em biografia do monge Columbano (540-615) fala após passar por mares e terras que “uma floresta é um vasto deserto, uma áspera solidão, uma terra pedregosa”. Nas lendas arturianas por exemplo, é na floresta que reside a aventura, pois, assim como o deserto, ela não é abraçada pelo Reino e Clero. Oliver Loyer em Les Chrétientés Celtiques faz um paralelo antropológico do deserto e mar (deserto marítimo; desertos do mar) e escreve que “O mar substituiu para estes monges o deserto egípcio”. Charles Higounet (1911-1988) diz que a floresta servia de fronteira e refúgio para os vencidos e marginalizados. São Bernardo fala aos jovens atraídos por escolas urbanas: “as florestas  ensinar-te-ão mais que livros(…) os rochedos ensinar-te-ão coisas que não aprenderias com os mestres da ciência”

E nas proscritas falésias e salsas águas não é diferente.

É plausível observar O Barco dentro desse conceito de Litoral Ancestral como se fosse a tríplice parte de um “Deserto-Litoral-Floresta”, onde nele reside a acedia dos desertos, o discurso dos marginalizados (tão simbólico quanto os limites da margem da pesca) e um espaço onde reino e clero nenhum alcança a não ser pela oralidade de quem veio ou foi. Não podemos restringir somente ao mar, pois é nele que as características singulares de seu Litoral Ancestral repousam.

O Mar em O Barco tem um papel fundamental nessa unidade, porque além de ser o espelho inquietante de alguns personagens, ele é Deserto-Floresta já que é desconhecido e até onde sabemos, também não é abraçado. Mas é o Mar que chega nas areias onde residem os homens e mulheres num absolutismo quase exclusivo onde a vista enxerga o horizonte. É Rei, É Desconhecido, É Deserto, É Floresta. Nos indagamos se aquele Mar é fronteira que marginaliza ou é caminho para um novo mundo. É silêncio ensurdecedor dentro e fora de quem o encara. 

Enquanto alguns se interessam pelo barco, como nas palavras do conto original de Carlos Emílio que estão adaptadas na tela: “Tudo aquilo lhe cheirava a estilo, a perfeição. Um barco que navegaria, que seria a eternidade. Cuspia no chão e mudava de assunto.”, outros vislumbram a embarcação cumprindo sua função de desbravar esse intrigante Além-Mar, já que a terra firme agora é um possível anti-jardim. Para chegar tal vislumbre, o filme mostra a proeza de transformar a incompletude como uma definição de um conjunto de sentimentos conflitantes que ressoa no marulho de cada onda na proa.

Se dentro da história de Petrus & Rosemberg Cariry e Firmino Holanda escutamos “Pelo Mar, quase nada chega e quase nada se vai”, é nessa singela chegada que O Barco habita o poderio daqueles nossos sentimentos que firmam os pés na terra e desbravam o mar em êxtase.


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