Undine – A releitura moderna do mito

Undine (2020), de Christian Perzold, foi selecionado para competir no famoso Festival Internacional de Berlim em 2020 e levou o Urso de Prata de Melhor Atriz para Paula Beer e FRIPESCI Prize para seu diretor. E veio colecionando vitórias como Serville Film Festival, Lisbon & Estoril, European Film Award e outros.

A premissa trata da jovem Undine Wibeau (Paula Beer), que trabalha como historiadora freelancer, recebendo e explanando para visitantes sobre o desenvolvimento urbano e habitacional de Berlim. O mito de Undine/Ondina toma certa forma quando a moça se apaixona e não é correspondida.

Na primeira visão, vemos um diálogo que define o mito descrito por Paracelso, deixando claro que, se seu primeiro affair, Joahnnes (Jacob Matschenz), não a amar mais, ela terá que matá-lo. A partir do encontro de Undine com seu segundo relacionamento, o filme confessa ser uma adaptação mais literal da novela Undine (1811) de Friedrich de la Motte Fouqué. Nela, a ninfa das águas precisa do amor do cavaleiro Huldebrand para ganhar uma alma, pois anseia em ser uma humana.

A atuação brilhante de Paula Beer entrega o que esperamos de uma Undine bem construída, digna de tantas óperas adaptadas: é um complexo de novas emoções onde o calor do amor se encontra em choque térmico com a frieza das situações. A procura de uma alma sofre risco quando se é um peixe fora d’água. Undine deposita em suas relações amorosas e trabalho a esperança de um entendimento nessa procura, mal sabendo que tais searas podem ser desprovidas de tal alma.

Provavelmente, o que torna o filme ímpar é a maneira como faz com que pares sejam opostos um ao outro. Ela, de essência aquática, sobrevive numa fria Berlim através do conhecimento terrestre, urbano e megalópole da capital alemã. Seu segundo par, é um homem soldador subaquático. Pior que um O Feitiço de Áquila (Ladyhawke, 1985), aquilo que se encontra nem sempre é suave e caloroso como um beijo. Petzold não âncora as representações mitológicas somente na protagonista e seu par. Seus símbolos são personagens míticos tão discretos como a rotina de um museu, café ou estação de trem. Kühleborn, que na novela de Fouqué é espírito das águas e tio de Undine, se faz presente metamorfoseado nas águas e quebradiços do filme quase como um prenúncio de alerta sobre os perigos que a sobrinha terá em suas relações.

Porém, a releitura do mito não fica preso ao romantismo alemão de Fouqué. Não somente dentro de uma contemporaneidade, mas Petzold abre um leque de interpretações que grandes obras nos proporcionam: será que nos tornamos humanos pela complexidade do amor, da vida e da humanidade ou ela nos afasta nesse mar de possibilidades? Nas margens da vida, quem quebra quem?

O que sabemos é que a espirituosa e instável Undine, assim como a etimologia de seu nome, é uma onda que quebra constantemente às margens do mundo humano. Na busca de Undine ser uma de nós, quem sabe nós somos como Undine e sua relação como a maleável água: ao nascer, nas ondas, indo e vindo, e sempre acompanhado de lágrimas.

Dedico o texto ao crítico Diego Benevides, que me apresentou o filme pelas suas redes sociais


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