Três Buracos e A Trilogia Monólita de Shiko

 

Muitos falam que o poder das decisões está de quem detém o “poder da caneta”. Sua regra não é absoluta, principalmente quando se conhece o poder do lápis nas histórias de Shiko, um dos maiores quadrinistas contemporâneos do Brasil, nativo da bela cidade de Patos/PE (praticamente a capital de Guararapes, por estar no centro de RN, PB e PE).

Ano passado (com primeira reimpressão em agosto desse ano) Shiko lançou pela Editora Mino a HQ Três Buracos, que conta a história de Tânia e seu irmão, que cresceram numa cidade de mesmo nome por conta das três locas: garimpo, puteiro e cemitério. O cruel pai das crianças descobre “a maior turmalina que já brilhou no mundo”. Tal achado causa desastres e efeitos que são sentidos até anos depois por Tânia, sua companheira Cleonice e o retorno do irmão.

Enxergo Três Buracos como a terceira parte de uma trilogia composta pelas irmãs Piteco:Ingá e Lavagem.

Em Piteco temos Ingá da Paraíba, o monólito mais importante da nossa arqueologia e um dos maiores do mundo. Berço da nossa raiz ameríndia rupestre.

Em Lavagem, a história é contada através de uma rica poética na figura da Bíblia e seus ensinamentos provenientes da pedra dos mandamentos,  pressionada através da visão cristã protestante.

Por último, a história de Três Buracos é desenterrada com a referência ao garimpo e a busca da pedra.

Essas “pedras” são lapidadas durante a narrativa através das mãos femininas e o poder que emana dessas personagens em conflito com os homens. Observamos que é através de Thuga que Piteco: Ingá inicia, regendo a oralidade de seu povo. É sequestrada pelos homens-tigre por acreditarem que ela é uma grande feiticeira. Em seu histórico ancestral matriarcal, é dela que o poder antigo emana. Ela é conflito e solução.

O mesmo ocorre em Lavagem. A protagonista, que sequer tem nome (diferente de seu marido Omar), é a regente da trama, invertendo o papel de conduzida pra condutora, diante de todos os questionamentos que a cerca.

Em Três Buracos, é Tânia que protagoniza o quão fundo o buraco da história é cavado e o quão perigoso pode ser quando não vedado.

Outra paridade entre elas é a ressignificação do sertão paraibano através de nossos olhos. O doutor em história social, professor Durval Muniz de Albuquerque discorre em Imaginário, Memórias e Política: “Sertão era pensado como uma área inabitada, o oposto da civilização. Mas da civilização do dominador, do colonizador. (…) Mas uma área não habitada por quem? Normalmente ‘não habitada’ por quem escreve o discurso, pelo dominador” (2020).

Com isso, a tríplice de Shiko nos ajuda a abandonar a visão de dominante para adentrar nesses cenários onde encontramos vida, história, pecados, sentimentos não tão diferentes quanto em qualquer parte do mundo. O sertão como “desertão” torna-se “ser tão”. É a magia do ponto de vista.

Nesses recortes propostos, Shiko deixa claro algumas de suas dimensões sociais, históricas, sociológicas e culturais. Vejamos as facetas de seus cenários nordestinos: a diversidade ecológica de uma Paraíba milenar; os mangues encharcados que contornam o Rio Paraíba e a árida localidade em referência da Turmalina Paraíba do distrito de São José da Batalha, na cidade de Salgadinho (que faz parte da Região Metropolitana da cidade natal do autor).

Em breve seremos agraciados com sua próxima HQ (que está na pré-venda) chamada “Carniça e a Blindagem Mística – Parte 1:  É Bonito o Meu Punhal”, mais um recorte de Shiko sobre uma das estéticas e fases mais icônicas e conhecidas do Nordeste: o Cangaço. Acredito que com ela teremos uma próxima trilogia com suas duas últimas obras.

Enquanto as jabiracas e bornais do paraibano não chegam, encerro com uma pergunta:

Será que Três Buracos vai repetir o histórico de suas irmãs Lavagem e Piteco nas premiações?


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