Malhação: Viva a Diferença – Representatividade e verdade

As novelas são, provavelmente, os produtos audiovisuais mais assistidos nesse nosso Brasil, e, ainda assim, elas não têm a melhor das reputações. Com certeza você já ouviu “coisa de novela” ou “tipo de novela” serem usadas para falar de algum aspecto negativo de alguma obra. Eu mesma preciso admitir que faço muito isso, mesmo sempre tendo assistido novelas, sendo noveleira sim, como provavelmente todes que, assim como eu, tiveram acesso apenas a TV aberta por boa parte da vida. Bom, você provavelmente está se perguntando como caiu em um texto sobre Malhação, a não ser que já conheça essa temporada maravilhosa sobre a qual vou falar. Mas vamos por partes.

Malhação (1995 -), como todo mundo sabe, é uma novela da Rede Globo que passa depois do Vale a Pena Ver de Novo, nesse horário de fim de tarde/começo de noite, e que está no ar a mais de 20 anos, cujo objetivo é lançar novos talentos. Muitas atrizes e atores famosos hoje em dia foram lançados ao longo dos anos na novela como Priscila Fantin, Cauã Reymond, Débora Falabella, Robson Nunes, Juliana Knust, Rômulo Neto… É praticamente o nosso Disney Channel brasileiro.

No começo havia certa continuidade, com aquela fase do Gigabyte e a icônica personagem que toda a população brasileira lembra: o Cabeção. Depois se tornou uma antologia, com cada temporada contando uma história diferente, com um novo elenco, mas com o passar dos anos acabou se estabelecendo um estigma de que Malhação era ruim, tinha atores ruins e atores muito mais velhos interpretando adolescentes e a má fama foi ficando.

Realmente algumas temporadas são fraquinhas, com diálogos bregas, elenco com um desempenho ruim, tivemos inclusive uma protagonista que era criada no Morro Branco, aqui no Ceará, e depois ia para o Rio de Janeiro, mas desde que ela estava no Ceará ela já tinha sotaque carioca. Um coisa impressionante.

A questão do elenco é algo que é difícil de fugir. Trabalhar com menores de idade no audiovisual é muito complicado, existe uma série de exigências, desde só poderem trabalhar meia-diária, a ter que estarem sempre acompanhados por um responsável, nada que não seja justo, mas seria impossível produzir uma novela que vai ao ar de segunda a sexta desse jeito, por isso é melhor escalar pessoas maiores de idade e as vezes ter, no máximo, umas cinco crianças no elenco. Agora, se colocam alguém para interpretar uma idade que não aparenta, já é outro problema.

Para mim, Malhação começou a mostrar que podia ser muito boa em 2012 com Malhação: Intensa Como a Vida, que não tinha nada de mais, até onde eu me lembro. Tinha um elenco bom e talentoso, uma história bem escrita e diálogos que realmente pareciam jovens conversando. Satisfatória e divertida.

Então veio a Malhação: Sonhos, de 2014, que é minha Malhação favorita, onde eu me apaixonei por Isabella Santoni e Rafael Vitti. Um pouco inspirada em A Megera Domada e talvez Karatê Kid (The Karate Kid, 1984), com roteiristas e diretores da temporada de 2012, fazendo com que ela funcionasse como uma continuação, tendo até mesmo personagens de Intensa Como a Vida aparecendo como participações especiais. Mas não havia escola na temporada. O foco era um prédio onde o andar de baixo era uma academia de muay thai e o de cima uma escola de artes, então eram atletas e artistas convivendo e eu amei demais, foi uma temporada muito bem escrita apesar da barriga no final que parecia ter sido apenas para esticar a novela, os diálogos eram ótimos e os roteiristas conseguiram até mesmo permissão para conseguir falar “cacete” como o palavrão da novela, fora um capítulo em que eu tenho certeza que Léo Jamie soltou um “porra” e mesmo assim foi ao ar.

Mas foi em 2017 que tudo mudou, com Malhação: Viva a Diferença. Uma história que ao invés de ter um casal principal como geralmente são as novelas, tinha cinco protagonistas femininas. Uma que está dentro do espectro autista, uma negra, uma asiática, uma mãe adolescente e uma bissexual. Totalmente diferentes entre si de todas as formas, que iniciam uma amizade por acaso, quando uma delas entra em trabalho de parto dentro de um vagão no metrô. Assim elas se tornariam as garotas do vagão.

Foi a primeira novela a ter uma protagonista asiática e uma protagonista no espectro autista, até onde sei. De tão boa que foi, agora durante a pandemia a temporada foi reprisada, com uma nova edição e agora, ao contrário da primeira vez que foi exibida, eu não perdi um dia.

Nomes que acho importante citar é que a série foi criada por Cao Hamburguer, um dos criadores de Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997) e de O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), a direção geral foi de Paulo Silvestrini, nome conhecido na Globo, tendo participado de várias novelas, e os roteiros foram feitos em colaboração com Jaqueline Vargas, Luciana Pessanha, Vitor Brandt, Carolina Ziskind, Mário Viana, Bruno Lima Penido, Cadu Machado, Renata Martins e Charles Peixoto.

Agora falando sobre as protagonistas.

Benê, ou Benedita, é interpretada por Daphne Bozaski, a única do elenco que eu já conhecia, por conta de uma série da Warner chamada Manual Para se Defender de Aliens, Ninjas e Zumbis (2017). Benê está dentro do espectro autista, mas é bastante funcional, lembrando um pouco o Sam de Atypical (2017 -), e é a liga que mantém o grupo unido. Por conta da dificuldade de socializar ela tem poucos amigos e sofre bullying. Seu autismo é trabalhado de modo natural e delicado, muitas vezes sua inocência é usada para humor e a atuação de Daphne cresce muito com o passar da novela.

Keyla é interpretada por Gabriela Medvedovski e, desde que eu a vi, meu sonho é que em um possível filme da Turma da Mônica Jovem ela seja a Mônica. Keyla é mãe de primeira viagem, muito sonhadora e imatura, ela acaba se deparando com essa grande responsabilidade ainda sendo tão jovem, o que mexe com sua autoestima de vários modos, mas isso não a impede de ser também a mãe do grupo e querer cuidar de tudo e todos.

Ellen é interpretada por Heslaine Vieira. Negra, hacker e super inteligente, é a nerd e cdf do grupo, sempre concentrada nos estudos, é uma personagem que tem que ser forte por ser quem é no lugar onde vive, mas ela se cobra ainda mais força, o que acaba fazendo com que seja alguém que tenta se distanciar de suas emoções e ser muitas vezes pessimista, mas isso não a impede de lutar pelo que acredita ou por quem se importa.

Tina, ou Cristina, é interpretada por Ana Hikari. Descendente de japoneses que tem uma relação bem difícil com a mãe e sente a liberdade que tanto deseja ser sufocada por uma criação restrita e com seu futuro todo planejado, exatamente do modo como ela não quer viver, já que a mãe quer que ela seja médica, mas Tina deseja viver de sua arte, sua música. 

Completando o quinteto, temos Lica, ou Heloísa, interpretada por Manoela Aliperti. Lica é bissexual, inconsequente e determinada, uma líder nata e é a mais militante do grupo, e vai aprender a ser isso para além de sua bolha e de modos mais corretos. Porém, também é a que tem mais problemas familiares. Sua família é uma bagunça, o que faz com que ela fique uma bagunça. Adoro que em Making Five (documentário sobre Viva a Diferença e sua continuação As Five, textos em breve), Heslaine diz que a continuação conta a história de uma mulher negra, uma asiática, uma mãe, uma com autismo e… uma Lica!

Todas elas são maravilhosas e muito talentosas, assim como todo o elenco na verdade, todes muito competentes e preparades, com personagens cativantes. De todes, fora Daphne, eu só conhecia Juan Paiva por conta de sua personagem em Totalmente Demais (2015 – 2016), Giovanna Grigio, do filme Eu Fico Loko (2017) e Carol Macedo, que sempre fez novelas, inclusive Fina Estampa (2011 – 2012), que também foi reprisada durante a pandemia. A presença do elenco nas redes sociais inclusive foi algo que contribuiu muito para o público se engajar também.

O fato das atrizes principais terem realmente se tornado amigas na vida real ajudou na química do grupo, além do envolvimento pessoal com a história, já que a vivência de Ellen é parecida com a de Heslaine e durante a novela, Tina tem um romance com um rapaz negro, sendo que essa é a história dos pais de Ana, uma mulher de origem japonesa e um homem negro.

Em termos técnicos, tudo na série é muito bom. A equipe foi um pouco além do estilo novela e tratou a temporada realmente como um seriado. Talvez tenha dado tão certo por isso, por levarem a temporada a sério, querendo fazer valer a pena, que fosse incrível e foi. Mas o destaque maior fica realmente para o roteiro, tanto para a história quanto para as falas. Os diálogos são reais e cada personagem tem seu próprio jeito de falar, alguns, por exemplo, usam mais gírias, outros menos, tem quem fale mais corretamente e quem não. Ao mesmo tempo em que mantém os dramas da novela interessantes, consegue conversar sobre diversos temas importantes de um jeito inteligente, simples, que todes conseguem entender, com bastante tato e delicadeza por conta do horário. 

O maior foco é em educação. Se você assistir a novela do início ao fim, vai ser uma verdadeira aula sobre educação no Brasil, desde história até como funciona, qual a realidade no momento e etc, mas também fala sobre racismo, machismo, assédio, violência contra a mulher, preconceito, feminismo, automutilação, transtorno alimentar, luta de classes, diversidade e várias outras coisas. Algo que eu amo e que infelizmente não é sempre que vemos em obras audiovisuais, que é amizade entre homem e mulher. Personagens masculinos e femininos conseguem interagir e conversar sem ter algum interesse romântico no meio, assim como temos personagens femininas que conversam sobre muitas coisas além de homens.

Mas claro, ainda é uma novela, então sim, estão presentes vários clichês de novelas, que na verdade talvez sejam clichês de séries de drama, como gravidez falsa, gravidez verdadeira, filho perdido que aparece e etc. Os dois núcleos principais da história são a escola pública Cora Coralina e o colégio particular Grupo, separados pelo que parece ser um quarteirão. Então o foco são os alunos, funcionários e famílias de cada escola e o encontro desses mundos que vai tirar cada um de sua zona de conforto. Os pontos altos da narrativa são as baladas, festas temáticas que as garotas organizam e são momentos em que todas as personagens ficam juntos, então tudo pode acontecer quando os núcleos se encontravam e interações inesperadas aconteciam.

Todos os acontecimentos são muito bem pensados, tudo tem uma consequência, uma repercussão, as ações dão em outras que dão em outras e assim por diante como uma fila de dominós. Inclusive um momento divisor de águas para a história é quando as amigas brigam e se separam por vários capítulos durante as férias. Cada uma faz uma viagem que é transformadora de algum modo para elas, e quando se reúnem estão diferentes e mais maduras.

O roteiro sabe bem quando dar destaque para as protagonistas e coadjuvantes, sabendo dosar quando e por quanto tempo falar de um assunto sério sempre na dose ideal e quando focar em coisas diferente e as vezes corriqueiras, porque sim, a vida é cheia de dificuldades, mas em alguns dias nós só conseguimos pensar se a pessoa que gostamos está pensando na gente, ainda mais na adolescência.

Como eu mencionei, fala sim da importância da educação, mas também fala sobre a vida além dela, sobre sair da sua caixinha da escola e viver novas experiências. Tanto que todas as protagonistas têm uma veia artística bem forte e a novela tem várias músicas originais bem bacanas. Para quem se interessar, a trilha está disponível nas plataformas digitais.

O elenco adulto também é competente, elus também tem suas próprias histórias e o destaque fica para Dóris e Bóris, que apesar de parecerem irmãos pelos nomes, na verdade são um casal de educadores. Ela diretora de escola pública e ele orientador educacional de escola particular, ambos se importam muito com seus alunos e a formação deles como estudantes e pessoas, em especial Dóris que apesar de tudo sempre tenta salvar todes que pode, sem desistir de ninguém.

Também, é claro, há muita representatividade e tocou muitas pessoas por conta disso, não só por se sentirem representadas, mas por sentirem que são importantes, assim como suas vivências. Nós vivemos em um país diverso então é importante falar e mostrar isso e ensinar sobre empatia porque mesmo sendo 2020, ainda é preciso sim ensinar isso. 

Um ponto forte talvez seja se focar em algumas representatividades, tentar contemplar literalmente tudo, faria a história se perder um pouco, perder o foco, mas é muito possível e normal se identificar um pouco com cada uma das protagonistas. Enfim, além da diversidade de cores, jeitos e mentalidades, também são exploradas outras orientações sexuais, com um rapaz que aparece mais para o final que é assumidamente gay, outro que tem dificuldade em descobrir realmente pelo que se interessa (mas na continuação, alguns anos depois parece que ele se encontrou) e temos um casal de mulheres. O casal mais amado da novela e, se não me engano, a primeira vez que mostraram um casal de adolescentes na televisão e conseguiram apresentar tudo muito bem, conseguindo lidar com as limitações do horário. E eu PRECISO mencionar, uma personagem cearense que em um capítulo fala “rebolar no mato”, expressão que aqui é usada pra jogar fora, jogar no lixo. Tudo para mim.

O final segue um pouco os padrões, ao mesmo tempo em que foge deles. Temos os casais prometidos desde o início da história ficando juntos. Porém nem todes terminam como um par, como é tradição das novelas de todo mundo, cada qual ter sua metade da laranja. Muitas questões são resolvidas, mas tantas outras ficam, assim como um gosto de, por favor, eu quero mais, eu preciso de mais!

Malhação: Viva a Diferença mostrou o grande potencial que as novelas têm se forem bem trabalhadas. Não teve medo de abordar temas relevantes, por mais que fossem considerados tabus. Não à toa bateu recordes de audiência e ganhou um Emmy Internacional de melhor série infanto-juvenil. Mas provavelmente teve seu próprio potencial um pouco cortado por conta do horário em que era exibida, na televisão aberta, tendo que seguir várias restrições por conta disso. Sem isso, talvez tivesse sido algo ainda mais incrível.

A temporada, assim como várias outras de Malhação, está disponíveis no Globoplay, mas no momento que esse texto sair ela provavelmente ainda vai estar sendo reexibida na Globo. 

A melhor parte é que, de tanto os fãs pedirem, decidiram fazer uma continuação. Uma série com as personagens mais velhas, na fase adulta, e agora com mais liberdade por ser uma série para o serviço de streaming da Globo, que vai se chamar As Five (2020 -). Acabou que a reprise foi um ótimo merchan para a série nova, a qual eu estou bastante ansiosa para a estreia, então podem ficar atentes para um futuro texto sobre.


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