Tenet – Embaralhando as regras do jogo do tempo

Na década de 80 o cineasta russo Andrei Tarkovski reunia várias anotações sobre sua arte para publicar um dos livros mais importantes da teoria do cinema das últimas décadas. Em Esculpir o Tempo, Tarkovski se propõe, entre vários assuntos, a pensar o cinema como uma arte que tem na dimensão do tempo uma de suas principais fontes. E isto está não apenas nos aspectos técnicos da arte – perceptível de forma mais objetiva na perspectiva da montagem -, mas também em sua abordagem narrativa, na forma como se pretende contar uma história.

Quando um cineasta cria sua arte, o filme, ele se propõe a jogar um jogo, e este jogo não pode ser jogado sozinho. O artista necessita do público para o acompanhar neste jogo que é sua obra. Existe uma relação de reciprocidade entre público e cineasta que deve ser respeitada por ambas as partes, colocando cada uma delas como partícipe desse processo infinito que é o filme. Esta relação também é mencionada na obra de Tarkovski, que percebe na dimensão da realidade o tabuleiro onde jogamos este jogo.

Pode parecer estranho iniciar este texto especificamente com algumas pontuações relacionadas à teoria do cinema, mas para mim não poderia ser de outra forma. Em minha opinião, Christopher Nolan é um dos cineastas mais importantes da atualidade, principalmente por ver nele um exímio jogador. Obviamente sei que estou falando de um cineasta extremamente comercial, mas é especialmente neste cinema mais popular que as regras do jogo mais precisam ser respeitadas. E um dos méritos de Nolan sempre foi exatamente respeitar o potencial de seu público, fazê-lo participar de seus filmes, entendendo que é com o público que sua arte se movimenta.

Mas voltando à dimensão do tempo, é bem claro para quem conhece a filmografia do cineasta que o mesmo sempre foi fascinado por estruturas temporais. E o mais interessante é que esse entusiasmo não fica apenas na narrativa, em filmes que tenham o tempo como mote conceitual de seu roteiro, mas também está na própria forma fílmica. A primeira vez em que Nolan faz um de seus grandes experimentos é em Amnésia (Memento, 2000). No filme, co-escrito por seu irmão Jonathan e a partir de uma ideia original deste, o protagonista Leonard (Guy Pearce) sofre de perda de memória recente e se vale de várias estratégias, como deixar mensagens (algumas em sua própria pele), para que consiga entender algo de seu passado. Assim, o filme meio que acontece narrativamente de trás pra frente.

Depois disso o diretor e roteirista sempre voltou a abordar o tema de diferentes formas, sempre lidando com conceitos da física, mas nunca complicando demais de forma a confundir o público, por mais complexos que esses conceitos fossem. Nolan se preocupa sempre em torná-los funcionais à narrativa, sem criar problemas para si e para nós. Até mesmo em Dunkirk (2017), um filme efetivamente de guerra, Nolan se propõe a brincar com a temporalidade dos acontecimentos, tentando uma falsa montagem paralela onde as ações que vemos se passam em velocidades (?) temporais diferentes.

Chegamos então a Tenet (2020), sua mais nova empreitada temporal, que prometia um Nolan brincando mais uma vez com um novo conceito relacionado ao tempo e… faz exatamente o que promete. Aqui somos apresentados à “entropia reversa”, a possibilidade física de tornar as coisas (e até as pessoas) “invertidas” em relação ao tempo linear e “para frente” como costumamos pensá-lo. Parece complicado, mas como eu disse, Nolan quase nunca nos deixa completamente alheios, e até o faz, mas apenas quando é narrativamente conveniente. O Protagonista (John David Washington) se envolve em uma trama que mescla gêneros como heist movie (ou filme de assalto) e espionagem, para tentar impedir que esta tecnologia do futuro acabe destruindo o passado… ou a humanidade… ou tudo que existe.

É uma premissa até simples, se formos analisar. Existe um problema, e existe um objetivo para que o protagonista e seu companheiro evitem esse problema, e neste caminho eles passam por várias ações e acontecimentos. Não é necessário ser um grande físico para compreender o filme, basta gostar destes gêneros, de cinema de ação e de uso de um conceito científico que possibilite, dentro destes gêneros, uma boa experiência audiovisual. E Nolan é mestre em fazer isso, ninguém poderá afirmar o contrário. Além disso o diretor é um talentoso artífice nas cenas de ação, entregando, com a ajuda da montagem admirável de Jennifer Lame e da trilha musical extremamente orgânica e funcional de Ludwig Göransson, algumas das melhores sequências deste gênero dos últimos anos.

O elenco se sai muitíssimo bem e encaram os personagens clichês de filmes de espiões de forma bastante fluida dentro da proposta do longa. Além de Washington que confere o mistério e o ar de deboche que o personagem necessita, Robert Pattinson e Elizabeth Debicki trazem também os pontos de sentimento da história, algo de que Nolan é sempre acusado de não saber tratar. Pattinson incorpora um certo humor que lhe caiu muitíssimo bem, enquanto Debicki, mesmo que encarne a tradicional donzela em perigo, muitas vezes também se mostra uma agente fundamental na trama. Kenneth Branagh aqui é um vilão digno das histórias de James Bond, com toda sua excentricidade e planos mirabolantes de poder, mas também funciona bem para o que o filme pretende.

No fim das contas Tenet é mais um filme do Nolan, o que, para mim, já é algo grandioso. Não traz nada de muito inovador em relação ao que o cineasta já fez e imprime em tela novamente várias de suas marcas, se dando até mesmo a liberdade de “cutucar” pontos onde sua filmografia geralmente recebe críticas. Mas Nolan, como sempre, respeita o público, seu parceiro de jogo, e isso é um dos maiores méritos de seu cinema. Mesmo brincando com as regras do tempo, tanto da realidade quanto no do cinema, Christopher Nolan entende que o que jogamos é um jogo cooperativo, onde só há vencedor se todos vencermos.


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