Gatunas – A adolescência como ela é

Gatunas (Trinkets, 2019 – 2020) não vai agradar a todos, muitos vão achar que é só uma série chata e boba, mas é algo sobre pessoas comuns, como eu e você e, infelizmente, nós não fazemos faculdade de arquitetura e do nada somos confrontados pelo Leonardo DiCaprio para nos ensinar a manipular as pessoas através de seus sonhos. Não é esse tipo de história.

Inspirada em um livro de mesmo nome, Gatunas estreou ano passado e já foi terminada esse ano, com seus humildes 20 episódios de 30 minutos cada, perfeita para quem gosta de uma maratona mais leve. Em uma mistura de coming of age e drama, acompanhamos as histórias de Elodie (Brianna Hildebrand), Moe (Kiana Madeira) e Tabitha (Quintessa Swindell), três garotas cleptomaníacas que acabam se encontrando e se unindo, criando assim uma amizade que vai ajuda-las a passar pelos desafios da vida. O bom e velho clichê das meninas diferentes unidas por algo.

A série começa bem desde sua equipe, com uma presença forte de mulheres, incluindo a escritora do livro, Kirsten “Kiwi” Smith, que também trabalha com audiovisual tendo participado do roteiro do clássico 10 Coisas que Eu Odeio em Você (10 Things I Hate About You, 1999). Mas a representatividade vai para as telas também, sendo duas das protagonistas interpretadas por atrizes LGBTQIA+ , Brianna Hildebrand, que interpreta Elodie, além de lésbica, gosta de levar uma representatividade positiva para suas personagens e Quintessa Swindel, que interpreta Tabitha, se define como não-binárie. Kiana Madeira é quem completa o elenco principal de jovens talentoses e a que mais rouba a cena.

As atuações são boas e a série conta com uma boa dublagem brasileira com grandes nomes como Jussara Marques, Samira Fernandes e Fábio Lucindo. Tudo na série funciona bem e se encaixa, valorizando bem suas personagens principais, com seu roteiro tão simples e natural que faz aqueles eventos realmente parecerem algo real, que você poderia ter ouvindo de ume amigue. Mas com certeza o maior destaque é a trilha musical incrível que complementa os momentos e nos coloca na pele das protagonistas, pelo menos em alguma música quem assiste vai parar para tentar achar qual é, eu mesma, reassistindo a primeira temporada e assistindo a segunda, fiz a minha playlist da série já que a Netflix não fez isso para nós. Mas não se enganem, apesar das muitas músicas a série também sabe trabalhar bem o silêncio.

O interessante é que não é uma série sobre três adolescentes ladras, é sobre três adolescentes, seus problemas e suas vidas que fazem com que elas roubem. A cleptomania não é o foco, o foco são elas, não são seus roubos, mas o porquê de elas roubarem, já que apesar de isso ser algo interessante de se trabalhar, roubar ainda é algo problemático e errado, que reflete os problemas das protagonistas. Então durante as duas temporadas vamos acompanhar como a amizade delas as ajuda a lidar com esses problemas.

Seguindo a estrutura das três amigas, Elodie é a new girl, a novata inocente e tímida, perdeu a mãe faz pouco tempo e está começando uma nova vida em uma nova cidade com o pai e a família dele, então desde o início ela sente uma grande necessidade de querer se conectar. Moe é a badgirl, a que não liga para o que os outros pensam, secretamente inteligente e sai com um dos garotos mais bonitos da escola, mas quase não tem amigos por um medo de se decepcionar com as pessoas, devido a problemas de abandono, ela lembra muito a Maeve de Sex Education (2019 – ). E Tabitha é a garota rica e popular (me faltou um termo em inglês aqui), vive uma vida de aparências onde não parece ter conexões reais e está presa em um relacionamento abusivo.

Nenhuma rouba por querer as coisas que pegam, mas para tentar suprir algo. O furto funciona como uma droga, elas o fazem quando estão frustradas ou tristes, para descarregar quando sentem que precisam. É uma fuga, um desejo de querer se sentir no controle, sentir que elas têm poder sobre alguma coisa que acontece, e quando conseguem se sentem poderosas e boas no que fazem. Não existe uma super história nem uma trama mirabolante, elas estão vivendo suas vidas e seus dramas e nós vamos junto, você fica na série realmente por conta das personagens.

São tratados temas adolescentes normais e até alguns mais pesados. Com três protagonistas é óbvio que a série vai abordar assuntos feministas, inclusive um dos meus episódios favoritos é quando elas vão em uma sex shop e falam sobre prazer feminino. A série também fala bastante sobre relacionamentos abusivos, por conta da Tabitha (mas esse assunto acaba afetando as três em certo momento), exposição de fotos íntimas, fugir de casa, racismo, abandono paterno… Mas trata tudo de uma forma leve, no sentido de que às vezes, algum assunto dura apenas uma cena ou um episódio. As personagens são atravessadas por muitos assuntos, e algumas coisas apenas passam pela vida delas, elas lidam com isso e seguem em frente.

Me agradou bastante o modo como falam de relacionamentos abusivos, é uma abordagem muito real. Nem todas as pessoas em relações assim apanham e ficam cheias de hematomas, envolve muito mais, envolve culpar a vítima, fingir que a pessoa abusiva não fez nada e muita manipulação. Também existe um bom diálogo sobre diversidade, em especial com Elodie, que é uma lésbica assumida e bem resolvida, cuja família sempre tratou o assunto de modo natural, sem maiores dramas. Ela é quem mais dita a primeira temporada, cuja história é um tanto rasa, mas na segunda as três dividem melhor o protagonismo, a história é melhor desenvolvida e praticamente todos os assuntos chegam a uma conclusão. Se quisessem poderiam forçar uma terceira temporada, mas acho que foi uma história que foi finalizada no tempo certo, mais do que isso poderia se tornar uma daquelas séries adolescentes que não sabem quando acabar e ficam repetitivas. 

Mas algumas coisas ainda me desagradam. O principal é as garotas de 16-17 anos ficarem com pessoas de 20 e tantos e como isso é problemático, mas quase não se discute o assunto, simplesmente acontece e ponto, apenas uma vez isso é minimamente discutido e o fato de Elodie pular de interesse amoroso muito rápido, depois de uma paixão avassaladora em dois dias ela já está apaixonada de novo, fica um pouco novelesco até.

No fim, nem todos vão gostar de Gatunas, mas eu gosto bastante. Não é inovadora ou revolucionária, mas é uma série gostosa de assistir, com personagens cativantes e músicas boas, e não tem nada de errado em ela ser assim.


VEJA TAMBÉEM

Sex Education: 2ª Temporada – Se organizar direitinho, todo mundo aprende

I Am Not Okay with This – O tempo é precioso