Disque Amiga Para Matar – Protagonismo feminino e um diálogo abrangente

Por mais que seja notório como a TV e o cinema se apoiam em muitos arquétipos narrativos para se contar uma história, é fato também que, mesmo com a fórmula posta a mesa, faz muita diferença quando há um bom planejamento e execução. Disque Amiga Para Matar (Dead to Me, 2019-), se enquadra nessa descrição: a receita para a série é inegável, mas com um excelente time, faz da sua tragicômica um diálogo abrangente.

Criada por Liz Feldman, de 2 Broke Girls (2011-2016), o primeiro ponto que se destaca no show é por contar, em sua maioria, com uma equipe feminina na produção, trazendo, então, a soma de dez mulheres orquestrando o papel de diretoras e assinando os roteiros das duas temporadas de Dead to Me – recentemente renovada para um terceiro e último ano. Graças a isso foi possível injetar em sua premissa um dedicado desenvolvimento acerca da dupla principal no protagonismo: Jen (Christina Applegate) e Judy (Linda Cardellini).

O elo se deu por esses traços improváveis que a vida nos concede, fazendo da amizade de JJ uma cumplicidade que supera as desavenças contrapostas nas diferentes personalidades, para conversar sobre sororidade, traumas, relacionamentos conturbados, neste conto que vai unificado ainda mais seu leque feminino.

Mesmo que contestado por várias cabeças da audiência, o título escolhido para o catálogo brasileiro da Netflix casa exatamente com os termos metódicos que a trama surfa a fim de entregar suas discussões: lado a lado com a inimiga – e claro, uma apelação para o nome do clássico Disque M Para Matar (Dial M for Murder, 1954), de Hitchcock. Brincando com a ideia de que a resposta buscada incessantemente por Jen após a morte violenta do marido atropelado e deixado na rodovia, estaria mais perto do que se imaginava. É só apontar pra amiga que tudo faz sentido.

E Dead to Me não nega sua inspiração para o molde típico de desdobramentos coincidentes e trágicos e de quando a grande teia de mentirada será descoberta, mas é através dessa sacada que surge um dos aspectos mais surpreendes e positivos da série: o humor ácido. O estilo debochado, a personalidade raivosa e boca suja de Jen, e o contraste espalhados por Judy, calma, otimista, prestativa e afetuosa, equilibram o tom da comicidade que ganha pontos pelo excelente timing em entregar comédia sem destoar das notas dramáticas que a atração vai alcançando.

Indo além da fórmula que se propõe, Dead to Me impacta quando revela que não se limita apenas em fazer humor com tragédia. Por trás das características claras que pontuam Judy e Jen, há o forte relato com as performances de Applegate e Cardellini. “Disque Amiga Para Matar” ou “Morreu Para Mim”, traduzem o sentido irônico das condições de relacionamentos abusivos que ambas se encontravam, e que acabaram por uma resgatar a outra. Nota-se que, durante vinte episódios, o nome de Ted, falecido esposo de Jen é citado inúmeras vezes, mas sem conhecermos como era sua aparência, sabemos dos efeitos causados em Jen: a sensação de que não é uma boa mãe, que é falha, inútil e incapaz de seguir em frente por causa da sombra do “bom esposo” que a acompanha por onde vá.

No caso de Judy, os reflexos de abusos pela convivência instável com a mãe, esperando o mínimo afeto materno, a tornaram uma mulher submissa por quem quer que diga “obrigado”, “você é legal”, “eu te adoro”. Por isso, toda vez que é tratada com hostilidade, Judy se vê no papel de compensar por atenção ou merecido gostar das pessoas ao seu redor. Ou, até quando sinaliza o tratamento que a deixa desconfortável, basta um simples “desculpe”, ela retruca com um “tudo bem”, como se não tivesse problema em ter um dedo apontado no rosto, por exemplo. Assim, a personagem se encontra a margem de um envolvimento amoroso abusivo e tóxico sem nem se dar conta, indo e vindo num ciclo que a transmite a sensação de culpa por qualquer erro cometido.

Estabelecendo essas nuances, a série de Liz Feldman contrapõe os altos e baixos que caracterizam a complicada e inesperada união de JJ, mas é exatamente em tais distinções que elas atingem o lugar de refúgio e regado carinho, necessitando uma da outra, onde sequer sabiam que poderiam torcer por estarem juntas. Depois da tempestade, vem a calmaria, e nessa repentina amizade, Judy e Jen puderam construir um ponto de apoio mútuo para o que mais temem em si mesmas. E o impacto disso é passado de forma orgânica, densa e intensa por Cardellini e Applegate, que sustentam esse retrato de cumplicidade e mulheres fortes em vivências de abuso.

Com muita carma e um texto discreto que emana empoderamento e feminismo, Dead to Me terminaria de maneira satisfatória a trajetória que seguiu por duas temporadas, mas como a coisa ainda brinca com dilemas da ação e consequência, podemos esperar por mais suspense entre culpa, amizade e humor desbocado – outros novos 10 episódios com Jen dizendo f*ck!


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