“Todos que eu gostava morreram ou me deixaram. Todos… Menos você. Então, não me diga que eu estaria mais segura com outra pessoa, porque na verdade eu só estaria com mais medo.”
– CONTÉM SPOILER –
The Last of Us (2013) é um dos meus jogos favoritos de todos os tempos. Depois de sete anos, eu ainda me lembro com muita clareza de esperar ansiosamente pela chegada do jogo, da felicidade de abrir o pacote, da empolgação de começar a jogar, do trauma inevitável dos primeiros 15 minutos de jogo. Jogos verdadeiramente icônicos são assim: eles ficam com a gente ao longo da vida, e mesmo que os anos passem, que o jogo se torne datado ou vire parte da sessão nostalgia, a experiência continua viva na memória do jogador, se tornando parte daquilo que molda você como gamer.
Esse trecho no começo do texto é uma das partes de The Last of Us que eu mais me lembro. Não é um momento especialmente impactante, considerando o conjunto completo do jogo, mas é um momento que eu sempre considerei decisivo para os personagens e para a jornada. O motivo pelo qual essa fala da Ellie ficou na minha memória desde 2013 é porque, pra mim, esse foi o momento que sedimentou o rumo da história de Joel de forma definitiva: proteger a Ellie a qualquer custo.
O que eu quero dizer com isso não é que o roteiro era particularmente convoluto e inovador. A Naughty Dog tem feito um trabalho excelente em gerar envolvimento dos jogadores com a narrativa usando roteiros que são simples e diretos, se valendo apenas de uma empatia orgânica que é consequência direta da ação de controlar um personagem no decorrer de um acontecimento. O ponto aqui é que a história começa progredindo em uma direção, todas as cartas são colocadas na mesa, todos os parâmetros são estabelecidos, e em algum momento da história, esses parâmetros vão mudar e o objetivo real – e final – será definido.
Em The Last of Us, um jogo sobre família, sobrevivência, e sobre a jornada de redenção de Joel, essa mudança acontece quando ele tenta passar a Ellie pra frente, fazer com que outra pessoa se torne responsável por ela, porque ele não consegue lidar com a perspectiva de perder outra “filha”. Imediatamente, ele é apresentado com a realidade de que já é tarde demais pra escapar: ele já se importa com ela o suficiente pra sentir a perda, e abandonar Ellie nesse ponto da história é o mesmo que lavar as mãos e aceitar qualquer coisa que aconteça com ela, ao passo que, se ele tomar a responsabilidade, ele pode fazer o possível e o impossível pra garantir que ela fique bem, e indiretamente se redimir por sua inabilidade em proteger Sarah, uma culpa que ele inconscientemente carregou por 20 anos.
Esse ponto é reforçado com ainda mais veemência no final, quando Joel está disposto a sacrificar uma possível cura, dizimar os Fireflies, mentir pra Ellie e ignorar completamente a vontade dela, contanto que isso signifique que ela vai ficar bem, viva, segura. Como um pai. E o final é agridoce, porque você vê um personagem com quem você desenvolveu uma forte empatia tomando uma decisão com a qual você pode até concordar, mas sabe que vai ter um impacto inevitável no relacionamento deles.
Mas esse era o fim do jogo. O que quer que viesse depois seria tecnicamente parte de outra história.
The Last of Us: Part II (2020) foi uma promessa que levou anos para se cumprir, mas que não era necessariamente essencial. Por mais sedentos que os fãs estivessem por uma expansão desse universo magnífico, a história do jogo deixou pouquíssimo espaço pra uma continuação que não fosse mais do mesmo, e o medo de um segundo jogo que não fizesse jus à experiência que o primeiro foi deixou muita gente relutante durante o período de especulação, mas isso não diminuiu em nada a empolgação que veio com o anúncio oficial da continuação em 2016.
Depois do primeiro teaser, centrado em uma Ellie mais velha, mais endurecida pela vida, e claramente numa busca por vingança, fãs tiveram quatro anos para especular e criar expectativas em volta do jogo. O envolvimento do público com a obra foi massivo desde antes de seu lançamento, e proporcionalmente, a reação ao resultado final foi explosiva, e com razão: o atraso aumentou a ansiedade, o vazamento de spoilers criou um clima complicado em volta do jogo, e a Naughty Dog fez promessas que não tinha intenção de cumprir, e tudo isso culminou num debate intenso a respeito da qualidade do jogo – que continua acontecendo mais de um mês depois de ter começado.
A verdade é que, em muitos aspectos, The Last of Us Part II é um jogo excelente. Em termos de jogabilidade, por exemplo, o jogo não deixa a desejar. A evolução da mecânica de jogo foi excelente, a variedade de abordagens possíveis para cada tipo de combate e cada ambiente do jogo tornou a experiência muito mais desafiadora e empolgante, e a ambientação foi mais uma vez impecável, mas isso não é tudo que importa. O que faz de TLOU2 um jogo problemático são algumas decisões de roteiro e principalmente o formato de narrativa escolhido para contar a história.
Começando pelo começo: a morte de Joel.
No momento em que foi estabelecido que Ellie seria a personagem principal da história, a morte de Joel passou a ser uma possibilidade real e palpável pra muita gente. Por mais querido pelo público que o personagem seja, de um ponto de vista de roteiro, a história do personagem inevitavelmente chegou ao fim junto com o primeiro jogo. Estamos falando aqui de um homem nos seus 50 anos, ficando progressivamente mais desgastado em um mundo que trata qualquer pessoa menos apta para sobrevivência com absoluta crueldade; depois que sua jornada de redenção termina, a única história que fica faltando contar é a de seu legado, que é onde entra a Ellie. Não estou dizendo aqui que a morte era a única opção, mas sim que era o melhor jeito de contar a história que TLOU2 se propõe a contar: uma história sobre luto, vingança e perdão.
E claro, por mais necessária ou inevitável que essa morte pudesse ser, existiam jeitos diferentes – e possivelmente melhores – de tratá-la. A abordagem escolhida foi excessivamente brutal – algo que condiz com o universo, mas é desnecessariamente cruel com qualquer pessoa que tenha passado 17 horas ou mais jogando TLOU e estabelecendo uma conexão com o personagem – e de certa forma prematura e sem contexto, e por mais que o propósito por trás dessa escolha de abordagem seja forçar um luto tão orgânico no jogador quanto o luto da própria Ellie, ela também desencadeia uma dissonância com a expectativa que tinha sido construída em volta do jogo, e cria uma sensação de traição para com a obra.
É aqui que as promessas não cumpridas da Naughty Dog se tornam relevantes: ninguém realmente espera que o conteúdo do jogo vá ser exatamente como é apresentado nos trailers, especialmente nos primeiros estágios de desenvolvimento, mas no trailer mais recente de TLOU2, várias cenas do jogo foram intencionalmente alteradas – chegando ao ponto de trocar um personagem por outro em uma cena e alterar idades e aparências em outra – a fim de manipular a expectativa do público. O objetivo aqui é claramente quebrar premissas e aumentar o tamanho do choque no produto final, mas sendo bem franca, o método desvaloriza desnecessariamente a experiência.
Independente de como o jogador receba a morte de Joel, esse é o acontecimento que coloca a história em movimento, e desse ponto em diante, nós somos expostos à jornada da Ellie, uma jornada que, disfarçada de vingança, leva o jogador por um caminho longo, tortuoso e doloroso na direção de uma conclusão que nunca parece satisfatória.
Logo de cara, Ellie é apresentada como uma personagem áspera, ranzinza e cautelosa, hesitante em confiar ou depender de seus companheiros – mesmo Dina, por quem ela está claramente (e desajeitadamente) apaixonada -, muito diferente da menina que conhecemos no primeiro jogo, e todas essas características são acentuadas pela perda de Joel: ela assume uma postura extremamente parecida com a que ele tinha no passado, reservada, obstinada e em alguns momentos extremamente brutal, disposta a qualquer coisa para encontrar e punir os responsáveis pelo que aconteceu.
Suas escolhas e ações são facilmente confundidas com atos de vingança, mas o jogo dedica um esforço excessivo para demonstrar que, por mais que a vingança seja o elemento de roteiro escolhido para conduzir a história, essa é uma jornada de luto. A dor da Ellie é sentida a todo momento, seja na fúria com a qual ela elimina seus inimigos, na música que ela sempre toca toda vez que pega no violão – a mesma música que Joel tocou pra ela no começo -, nas anotações e desenhos que ela faz em seu caderno, ou no momento em que, antes de sair de Jackson, ela passa na casa de Joel para pegar seu revólver, o relógio de Sarah e – num momento dolorosamente humano – sentir o cheiro das roupas dele uma última vez.
Entretanto, o jeito mais eficiente que o jogo encontra para evocar esse luto em sua forma mais completa são os flashbacks. Através desses pequenos vislumbres do passado, o jogador é transportado para diferentes momentos do relacionamento de Joel e Ellie, do mais feliz ao mais amargo, momentos escolhidos a dedo para afetar as emoções do público.
Esses flashbacks servem para esclarecer a parte oculta do relacionamento dos dois que aconteceu nos 4 anos desde o primeiro jogo, um relacionamento que nos é negado pela morte prematura de Joel, mas eles também são as memórias da própria Ellie, voltando pra ela uma a uma toda vez que ela faz uma pausa na jornada e tenta descansar. Os flashbacks também funcionam como pontos de transição: toda vez que acorda de um deles, Ellie aparenta estar mais exausta, mais quieta e um pouco mais próxima de um limite do qual ela pode não ser capaz de voltar.
O luto aqui é vivenciado à força, e a narrativa de vingança serve apenas para dar propósito a todos os sentimentos horríveis que surgem com ele – ódio, tristeza, injustiça, culpa – sem nunca trazer uma resolução, constantemente levantando questionamentos como “onde é que isso vai chegar?”, “qual é o propósito disso tudo?” e “será que isso vale mesmo a pena?”. E o jogador vai com a Ellie a cada passo do caminho, manipulado em um redemoinho de emoções e forçado ao ponto do desconforto a sentir tudo que ela sente, mas toda vez que essa busca incessante por uma justiça distorcida é interrompida por lembranças de Joel, fica mais e mais evidente que não importa quantas pessoas ela mate, Ellie nunca vai ficar satisfeita. O que ela quer não é se vingar. O que ela quer é o Joel de volta.
E é aqui que se torna extremamente necessário falar sobre a Abby.
Abby é introduzida na história do pior jeito possível: suas ações de extrema violência são sem contexto ou justificativa, e independente do motivo, o crime que ela comete não é apenas contra Joel e Ellie, mas contra o jogador especificamente, destruindo expectativas, memórias e promessas com um único golpe, e determinando, daquele ponto em diante, o rumo que a história vai tomar.
Só depois de Ellie ter matado todos os seus amigos é que a natureza das ações de Abby finalmente se esclarece, através de um flashback que serve não apenas para esclarecer suas motivações, mas também para estabelecer o tipo de personagem que ela é.
Pessoalmente falando, Abby é o tipo de personagem que eu mais odeio. Ela se cobre com um manto de justiça, convicções e certezas, e valida suas ações – não importa o quão moralmente duvidosas ou simplesmente erradas elas sejam – como sendo por uma causa maior, enquanto qualquer outra pessoa se comportando exatamente do mesmo jeito, mas por um motivo diferente, está automaticamente errada e deve ser eliminada. É assim que ela se coloca em um pedestal de superioridade não merecida, e não apenas justifica mas também encoraja todas as atrocidades cometidas pelos grupos “políticos” aos quais ela se alinha.
Percepções pessoais a parte, esperar até o meio do jogo antes de apresentar a história de Abby é um desserviço à personagem e ao jogador: um entendimento um pouco mais claro da origem dela teria poupado parte da confusão e dissonância causadas pela morte repentina de Joel, e posteriormente, tornaria a porção da narrativa que mostra o ponto de vista dela menos frustrante e – em certos pontos – desinteressante. Em vez disso, depois de quase 20 horas vivendo na pele a agonia do luto de Ellie, você cai de paraquedas nas convicções pouco convincentes de Abby, e precisa se virar pra encontrar propósito nas próximas 8 horas de jogo.
Em seu primeiro flashback – que introduz a mudança de ponto de vista no jogo -, uma manipulação narrativa barata camufla suas hipocrisias e falhas de caráter com ações pequenas e mundanas que demonstram um nível bem básico de humanidade, e tenta pintar a personagem como alguém que tem boas intenções mas péssimas circunstâncias, falhando completamente: é difícil desenvolver qualquer empatia por uma pessoa que hesita em ajudar um animal ferido mas não pensa duas vezes antes de aceitar sacrificar uma criança, especialmente quando a primeira coisa que vemos dela é a brutalidade com a qual ela mata Joel.
Ironicamente, essa segunda metade do jogo é consideravelmente mais fácil e divertida de jogar: os encontros com inimigos são relativamente mais espaçados, os recursos são abundantes, os ambientes são extremamente interessantes de explorar, e a personagem tem uma variedade de equipamentos e habilidades especificamente direcionados para combate, um contraste vívido com o setup de sobrevivência de Ellie. Além disso, sem a empatia servindo de ponte entre jogador e personagem, é muito mais fácil se desligar da jornada e focar mais na ação, e é justamente por causa disso que leva um tempo para desvendar a intenção por trás dessa parte da narrativa.
A verdade é que Abby existe na história mais como uma acessório de roteiro do que como uma personagem independente. Sua jornada foi planejada para mimetizar – de um jeito expositivo mas não muito profundo – a jornada de Joel em TLOU, ao mesmo tempo que contrapõe a jornada em andamento de Ellie.
Inicialmente, nós vemos uma personagem que, apesar de não ser o adulto da família, é especificamente taxada com a tarefa de proteger o próprio pai, e quando ela inevitavelmente falha, ela descende numa espiral de ódio e rancor pelos próximos cinco anos, culminando na realização de uma vingança brutal que não muda em nada o que ela sente. Enquanto Ellie está vivendo um momento de luto direcionado pela vingança, Abby chega ao fim de um ciclo de vingança inspirada pelo luto apenas para descobrir que sua vida tem estado vazia de conexões e significado por um bom tempo. Ela transformou a si mesma em uma ferramenta de destruição, e agora que sua motivação se foi, ela não sabe o que fazer para seguir em frente, e se vê voltando de novo e de novo para o mesmo corredor de hospital no fim do qual ela encontra o corpo sem vida do pai, pra sempre presa naquele momento de dor sem resolução, esperando para abrir a porta e encontrar algo diferente do outro lado.
Incapaz de sair desse loop sozinha, Abby conta com uma pletora de personagens secundários para auxiliar seu crescimento, e mesmo que nem todos eles sejam interessantes – ou importantes -, todos eles são relevantes. Alguns estão presentes exclusivamente para demonstrar o quão efêmeros e sem propósito os relacionamentos de Abby são: mesmo dentro de seu círculo de amigos, ela tem apenas três ou quatro pessoas com as quais realmente se importa, e apenas uma em quem realmente confia, e depois de voltarem de Jackson, a interação entre eles deixou de ser a mesma, e ela tem sistematicamente evitado companhia.
Aqui, Owen aparece como a constante oferta de recomeço que é repetidamente recusada, sendo o elemento central de quase todos os flashbacks da personagem, e constantemente questionando o que é certo e o que é errado e iniciando debates morais em volta das escolhas dela. Por outro lado, Mel é o lembrete de todos os erros cometidos, todas as oportunidades perdidas, e do preço que foi pago pela vingança, chegando ao ponto de questionar se uma boa ação é suficiente pra desfazer toda a destruição que ela já causou.
Paralelamente, Lev e Yara representam a tão desejada oportunidade de redenção, uma chance de fazer a coisa certa, de usar anos de treinamento de sobrevivência e combate para salvar e proteger ao invés de destruir. Numa parceria relutante, os dois irmãos mostram a Abby que a face do inimigo não é exatamente aquela que ela tem imaginado todo esse tempo, e toda a sua convicção começa a ruir, especialmente quando Lev, agindo como a voz da consciência da personagem, aponta não apenas erros de julgamento e decisões ruins, mas também a fragilidade do sistema de crenças que ela usa para guiar suas ações.
Na companhia de Lev, a história de Abby finalmente passa a valer a pena, mas nesse ponto nós já sabemos que a história ainda está longe de terminar.
Ao longo de todo o jogo, fica bem claro que vingança e sacrifícios são equivalentes nessa história. Toda vez que Ellie mata um dos amigos de Abby, nós assistimos um pedaço de sua humanidade se desprendendo e ficando pra trás. Sem a companhia gentil, compreensiva, amorosa e estabilizante de Dina, ela provavelmente já teria se deixado consumir, e ela reconhece isso, e manifesta um medo intenso de acabar sacrificando a namorada nessa busca por vingança. Paralelamente, Abby aparece como a prova viva de que vingança perpetua os ciclos que promete encerrar, e a dor e o vazio nunca vão embora.
Mas por tomarem as decisões que tomaram, não existe alternativa para as personagens que não seja o confronto, e isso gera ainda mais sacrifícios: Jordan, Nora, Owen, Mel, Manny, Jesse. Até mesmo Tommy acaba sacrificando mais do que gostaria, e quando as histórias convergem, é a vez de Ellie e Abby decidirem quem vai fazer o sacrifício final.
O combate entre as duas é… Interessante. Por acontecer pelo ponto de vista de Abby – e num formato idêntico ao combate contra David em TLOU -, é uma parte particularmente complicada de jogar: você sabe o que tem que fazer pra dar continuidade à história, mas não tem nenhuma vontade de derrotar Ellie, e a garota não é exatamente um alvo fácil. No fim, a batalha é decidida por Dina e Lev, e quando a poeira baixa, você percebe que esse ainda não é o final da história.
Em determinado momento do jogo, eu me peguei tentando imaginar como seria o final e não consegui.
Ellie, sendo visivelmente consumida pela dor da perda, parecia que ia desmoronar se deixasse a vingança pra lá. Abby, protegida por sua superioridade sem fundamento, nunca seria capaz de deixar uma Ellie que matou todos os seus amigos escapar com vida. Do jeito que as coisas iam, eu honestamente esperei que o ciclo continuasse até todo mundo estar morto, ou mesmo que Ellie sonhasse/alucinasse/tivesse uma visão de Joel que convencesse ela a parar.
O que eu realmente não esperava era que, em sua reta final, o jogo ainda tivesse espaço para aperfeiçoamento de personagens.
Depois de quase um ano, Ellie se mudou para uma fazenda fora de Jackson – uma casa sem fantasmas ou memórias das pessoas que ela perdeu – e construiu uma família com Dina, mas mesmo seus momentos mais doces e tranquilos ainda são assombrados pelo trauma. Sua felicidade é superficial, e por mais que ela queira se entregar completamente à nova vida, Ellie não come, não dorme, e sofre ataques de pânico sempre que algum gatilho a leva de volta para o momento da morte de Joel.
Visivelmente desgastada, ela parte mais uma vez em busca de vingança. É extremamente triste, vê-la abandonar Dina e a vida que elas construíram juntas, mas ao mesmo tempo fica claro que Ellie – repetindo o padrão de Abby – não consegue se conectar com o presente. Ela continua pra sempre presa nos últimos momentos de Joel, tenta desenhar o rosto dele nos cadernos mas não consegue lembrar dos olhos direito, a não ser por aquele último momento, tenta seguir em frente mas continua inevitavelmente voltando.
E Abby, por sua vez, seja por carma ou simplesmente porque o mundo de TLOU é naturalmente cruel, está vivendo sua própria versão de inferno quando encontra Ellie, tendo vivido os últimos meses como prisioneira. Cansada, desgastada e visivelmente fraca, ela não quer mais lutar, não tem mais energia pra isso, e mesmo que tivesse, suas prioridades mudaram, mas ela não poupa esforços para proteger Lev.
Enquanto assiste, do ponto de vista de Ellie, uma Abby à beira de um colapso colocando todas as suas forças em carregar Lev para um lugar seguro, o jogador é inevitavelmente transportado para o primeiro jogo, para a imagem de um Joel desesperado, disposto a qualquer coisa para proteger uma menina que não é sua filha mas ele ama como se fosse, carregando ela nos braços na direção de uma promessa de futuro que não envolva uma cura ou uma morte altruísta, mas sim uma vida longa, segura e feliz.
Esse paralelo é traçado aqui porque Joel se foi, mas seu legado continua, e esse legado é a peça que falta pro desfecho da história, porque no fim, o que ele deixou pra trás não foram um relógio, um revólver, um violão, ou meia dúzia de memórias embaçadas que vão desbotando com o tempo. Não, o legado de Joel é a própria Ellie: sua vida, sua felicidade, seus sonhos, suas conquistas, tudo que teria sido tomado dela se ela tivesse morrido, tudo que ela nunca teria tido a chance de experimentar e descobrir e sentir.
No começo desse texto eu disse que esse era uma história sobre luto, vingança e perdão, e é aqui que o perdão finalmente aparece. No auge de sua dor, da raiva e do desejo de vingança, ao fim de uma jornada que quase a destruiu, Ellie finalmente se lembra do rosto de Joel, do amor em seus olhos quando ele olhava pra ela, e nesse momento, ela percebe que consegue perdoar não apenas Joel, por ter tomado as decisões que tomou no final de TLOU, mas também a si mesma, por ter sobrevivido quando outros – Riley, Tess, Sam – não conseguiram, por não ter perdoado Joel antes que ele morresse, por ter desperdiçado o precioso e dolorosamente curto tempo que eles tiveram juntos com brigas e mágoas, por ter demorado tanto tempo pra entender. O momento é catártico, libertador e profundamente emocional.
Apesar de ter ficado profundamente traumatizada com a violência gráfica da morte de Joel, é o rosto dele no último flashback que vai pra sempre ficar comigo, seus olhos marejados e vulneráveis, a voz embargada de quem se esforça pra segurar o choro, as palavras firmes, gentis e cheias de amor de um pai que ama sua filha mais do que tudo no mundo.
The Last of Us Part II é um jogo intenso, com uma carga psicológica pesada, e que exige muito da inteligência emocional do jogador, mas apesar de suas falhas e dificuldades e dos sentimentos complexos que traz à tona, o jogo ainda é excelente e sua mensagem de crescimento pessoal é extremamente relevante. O final da história é um pouco mais triste que o final do primeiro jogo, mas igualmente agridoce, e apesar da casa vazia e dos pedaços faltando, eu gosto de pensar que Ellie conseguiu encontrar felicidade – e a Dina – em algum lugar – por ela mesma, mas também pela memória de Joel.
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Unicórnia, escritora, wannabe de roteirista e fangirl profissional, se alimenta de livros, filmes, games, animes, seriados, fanfics e cupcakes. É ocasionalmente vista chorando enquanto assiste animes de esporte, assombrando livrarias e eventos geek pela cidade, contando histórias de terror em salas escuras ou falando com gatos na rua. Os gatos normalmente respondem.