Falar sobre juventude é sempre um desafio. Retratar essa vivência sem cair em velhos clichês parece inevitável, mas também, um atrativo que volta e meia agrada, apesar das repetições. Ambiciosamente, Boca a Boca (2020 -) não é o caso. A nova série brasileira da Netflix, tem muito a falar. Quer impactar e refletir sobre tempos embaraçosos sem rebuscar para fórmulas absurdas que rondam a realidade adolescente. Criada por Esmir Filho, o qual também dirigiu os seis episódios ao lado de Juliana Rojas, a atração de suspense é narrada na fictícia Progresso, cidade conservadora no interior do Brasil, a qual é centro de uma infecção transmitida através do beijo. Os afetados são os jovens de uma escola agrícola da comunidade, após participarem de uma grande festa.
Parte da força de uma obra, com certeza, está em como ela se torna um objeto identificável para o público. Se o entretenimento sem compromisso é buscado para aliviar a tensão diária, a comédia futurista do Prime Video, Upload (2020 -) pôde flertar acerca de relacionamentos, a aposta da streaming vermelha acertou em cheio ao coincidir com nosso período pandêmico. Mesmo que mostrada por proporções diferentes do que estamos enfrentando, ter a premissa de uma doença infecciosa centralizada em um espaço conservador, famoso por ditar as próprias regras, a trama ganha pontos ao denunciar o comportamento e as reações humanas diante de tal cenário.
Talvez, este seja o maior trunfo quando se propõe a tratar assuntos de grandes escalas em âmbitos limitados: os efeitos tendem a ser mais intensos, sufocantes e insanos. E começam a se alastrar como fogo que só precisava de uma faísca para expor as camadas. Progresso já era um lugar tradicionalista, regrado pelo que consegue controlar, e seu incendiário manifestou-se por uma epidemia. Enquanto na mão da adolescência a internet, as redes sociais e seus meios se tornam armas para aguçar o quadro, cabem aqui aos adultos o papel de contornar a situação antes de agravar-se. Mas o que surgiu no boca a boca, é o que não estavam prontos para lidar.
De maneira ágil e gradativa, Esmir e Juliana provam a eficiência narrativa ao descamar os preconceitos e posicionamentos individualistas ainda que uma crise epidêmica esteja assumindo um caráter arrasador em meio aos jovens, revelando, assim, a razão se perdendo para a generalização naquilo que acreditam ser as medidas necessárias para proteger a si mesmos. Nem que isso signifique abraçar o descaso, o drástico, o questionável e a automedicação. É o contágio indo além do beijo e atingindo nossas fragilidades, expondo reações.
Como um pacote completo, Boca a Boca não se acomoda a abordar apenas seu fator chave difundido numa cidade antiquada, ampliando seu mistério e suspense numa mitologia que se estende numa poderosa estética e valor de arte visual. Esbanjando beleza e muito slow motion, a direção artística, orquestrada por Fred Pinto, caprichou na paleta de cores brilhantes e tons vibrantes, caracterizando o show ao vestir a peculiar Progresso de plástico e a pintar (e também sua doença) com o rosa, roxo e neon. Atenuando a carga sensual e de desejo deste universo repleto da juventude calorosa e beijoqueira.
Além de todos esses aspectos que indicam a qualidade da produção, a dupla de cineastas ainda pontua com a sacada irônica e metafórica que a epidemia alcança por meio dos personagens. Aliás, Boca a Boca sela seu significado através de uma síndrome que atinge as emoções, traçando um paralelo sobre uma adolescência reprimida, nos seus desejos, sentimentos, marcadas pelos traumas, medos e ecos da ansiedade e solidão. Unificando isso há um diálogo e reflexão acerca da maneira que nos dispomos as nossas relações e comunicações, sejam nos grupos familiares, e principalmente, entre pais e filhos. Em tempos difíceis, o que mais é agravado e lembrado são os laços afetivos construídos ao longo de nossas experiências.
Com uma condução marcante, munido de uma trilha sonora que embala e causa nostalgia, Boca a Boca emplaca um mistério rico, capaz de salientar ainda sobre classes e a superficial apatia ressoada na contemporânea tecnologia. Por seis episódios, o show nutriu um curioso protagonismo dos personagens, garantindo bem a nuvem de suspense para um possível segundo ano. O que não faltam são os selinhos promovendo elogios e mais audiência para este grande acerto. Que tenhamos mais dessa brasilidade pandêmica.
VEJA TAMBÉM
Septo – Um coming of age potiguar
Reality Z – Apocalipse zumbi verde e amarelo
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.