Abbas Kiarostami – Um contador de histórias

 

Em 2016, o mundo perdeu um de seus maiores contadores de histórias. Abbas Kiarostami, que percorreu várias artes desde a poesia até a fotografia, passando é claro, pelo cinema, deixou para trás um legado importantíssimo para o cinema contemporâneo mundial e certamente deixará saudades pelos seus belíssimos filmes recheados de humanidade com narrativas bem desenvolvidas e planos bem compostos, que fogem do óbvio em termos de decupagem e roteiro.

O diretor possui uma vasta cinematografia, iniciada no início da década de 1970 e mantida com uma grande produção até 2016. Já no início deste período, no final dos anos 70, o Irã passa por uma revolução que destituiu uma monarquia autoritarista, governada pelo Xá Mohammed Reza Pahlavi para a consolidação de um governo teocrático sob a figura do aiatolá Ruhollah Khomeni. A partir dessa revolução, instaurou-se um governo muito rígido e de muito controle sobre as práticas culturais e com total aversão a influência do ocidente. O filme, de 2007, Persepolis, uma autobiografia de Marjane Satrapi retrata bem o período entre a troca de regime e como isso influenciou o cotidiano do povo iraniano.

O cinema iraniano, contudo, data de um período anterior a essa década, já nos anos de 1940 e 1950 prevalecia um modelo industrial chamado “cinema farsi” responsável por uma produção significativa de cerca de 80 longas-metragens ao ano. Após a revolução iraniana, o governo do país passou a censurar cada vez mais as obras cinematográficas que tinham fins políticos e caráter de denúncia ao Irã. A maior parte da censura veio nos anos 90 e 2000, o próprio Abbas Kiarostami, que já tinha um renome internacional, e outros cineastas que o acompanhavam como Jafar Pahani tiverem suas obras impedidas de circular dentro do seu próprio país.

Onde fica a casa do meu amigo? (Khane-ye doust kodjast?, 1987)

Abbas Kiarostami se destaca por ser um contador de histórias nato. Walter Benjamin diz que o bom narrador é aquele que consegue intercambiar experiências. Indo um pouco mais além, o narrar está ligado ao fato, sobretudo, de transmitir sensações. Ser capaz de levar aos espectadores ou leitores algo presente em sua realidade, é tocar intencionalmente nas experiências vividas do público, sejam elas boas ou más. Nesse sentido, Kiarostami é mestre, não só por buscar no cotidiano as narrativas necessárias para o desenvolvimento de seus filmes, mas por ter total domínio das estrutura fílmica.

O filme que foi responsável pela internacionalização de Kiarostami foi o Onde fica a casa do meu amigo? (Khane-ye doust kodjast?, 1987) vencedor do prêmio Leopardo de Bronze no ano de 1989 no Festival Internacional de Locarno. Esse filme dá origem a chamada Trilogia do Koker, nome batizado pela crítica, mas que lhe é negado pelo diretor. Esses três filmes que compõem a obra do diretor são objetos de uma breve reflexão a seguir. 

“Onde fica a casa do meu amigo?” conta a história de Ahmed que por engano leva o caderno de seu amigo para casa Quando percebe o engano ele tenta alertar os adultos que seu amigo pode ser prejudicado, não sendo ouvido, ele resolve por si ir atrás do amigo em um vilarejo vizinho. A narrativa por mais simples que seja não é boba, gravado na região de Koker, no norte do país, Kiarostami faz questão de mostrar a trajetória do menino caminhando por um vilarejo pobre no Irã. Não há necessidade de um diálogo verborrágico sobre a situação do país ou algum outro recurso pobre para explicar o filme, as falas aqui são simples, até porque todos que atuam no filme não são atores profissionais, mas conseguem transmitir aspectos da cultura e do pensamento político do país por meio desses diálogos banais. O jogo de câmera e a decupagem do Kiarostami trabalham justamente nesse desejo de mostrar tudo que for possível, esse choque de realidade, em uma comparação distante, lembra um pouco o filme Alemanha, Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948), de Roberto Rosselini. A resolução do filme vem acompanhada de um plano belíssimo do garoto sem saber o que fazer e sendo forçado a fazer sua tarefa de casa, um vento forte abre a porta da casa que dá acesso a uma área externa, nesse momento o filme ganha um tom mais sobrenatural e quase divino.

E a Vida Continua (Zendegi va digar hich, 1992)

Em 1992, o filme E a Vida Continua (Zendegi va digar hich) tem sua estreia no Festival de Cannes e Kiarostami dá sequência a história do filme de 1987. Neste filme Kiorastami trabalha o recurso da metalinguagem cinematografia, que se torna comum em seus filmes, principalmente os da década de 1990. Aliás, seu filme anterior Close-Up (1990) já trabalha bem essas questões. No filme de 1992, o cineasta resolve contar a história de um pai e filho que viajam de carro a região de Koker que sofreu um grande terremoto, eles procuram um garoto que atuou em um filme anos antes para saber se está tudo bem com ele, o garoto em questão é o ator que viveu o jovem Ahmed no primeiro filme da trilogia do Koker. Durante essa trajetória o pai (que é diretor de cinema) e seu filho passam por cenários destruídos pelo terremoto que mostram todas as mazelas que uma tragédia como aquela em um país pobre pode causar. A maturidade de Kiarostami presente na decupagem que não tem pressa em cortar e que, propositalmente, mantém um plano longo contemplativo em que a mise-en-scéne é tão precisa que transforma um plano do filme em um mundo de possibilidades e interpretações.

O último filme da trilogia do Koker é o Através das Oliveiras (Zīr-e Derakhtān-e Zeytūn, 1994), aprofundando ainda mais o filme anterior, esse é um filme dentro do filme. O diretor do filme é o próprio Abbas Kiarostami que aparece dirigindo uma cena específica do filme anterior. Essa linha tênue entre ficção e realidade é a marca do diretor em toda essa trilogia. Nomeado para concorrer a Palma de Ouro em Cannes o filme conta a história do não ator que interpreta um personagem no filme anterior e que pede em casamento uma jovem não atriz que contracena com ele durante uma cena. A resposta final sobre o pedido de casamento vem um longo e grande plano geral de uma plantação de Oliveiras e finaliza com um tom poético a trilogia.

Através das Oliveiras (Zīr-e Derakhtān-e Zeytūn, 1994)

Ver filmes de Abbas Kiarostami é encontrar-se com a humanidade, com o minimalismo das narrativas do cotidiano e com o cinema. Seus filmes perpassam a apreciação e entram na seara das metáforas visuais e sociais. Os três filmes são exemplos do quão profundo e minimalista é a narrativa de Abbas Kiarostami. A busca constante por elementos do cotidiano é um elemento recorrente do cinema contemporâneo, mas seus filmes vão um pouco além disso. Eles são questionadores e até mesmo transgressores do cinema. Essa característica acaba tornando-se uma ferramenta recorrente em suas obras, desde os mais narrativos até os mais experimentais, como Five (2003), filme que homenageia Yoshiro Ozu. A trilogia do Koker de Abbas Kiarostami é um retrato de uma região e de um povo do Irã. É um exemplo de humanidade e resistência de fazer um cinema político em um país que reprime esse tipo de arte. Transformando situações do cotidiano em filmes, Kiarostami demonstra total domínio da linguagem cinematográfica e de suas histórias, sempre nos brindando com filmes que são capazes de nos fazerem refletir e emocionar.


VEJA TAMBÉM

Táxi Teerã – O cinema político de Jafar Panahi

3 Faces – Poesia e resistência