A Caçada – Um guilty pleasure de respeito

Eu queria muito começar esse texto dizendo que A Caçada (The Hunt, 2020) é como se fosse o Bacurau nos moldes americanos. Mas, fuçando pela internet, vi que alguém já fez isso. Então não vou incorrer em plágio. O fato é que qualquer pessoa que já tenha visto Bacurau (2019) – e, se você não viu, acho bom que veja (sério, veja!) – não vai conseguir não fazer essa comparação.

The Hunt conta a história de um grupo de pessoas, aparentemente mais simples, sendo perseguidas e assassinadas por ricaços metidos à politicamente corretos. Uma metáfora nada sutil aos grupos extremistas americanos: os conservadores e os liberais. No entanto, apesar da analogia, o filme não se pretende sério. Muito pelo contrário: possui um roteiro que satiriza os pensamentos das duas partes da população dos EUA, colocando o espectador em uma espécie de “sinuca ética”. Eu explico…

Deixa, primeiro, eu situar você na trama. A gente começa o filme vendo uma tela de celular onde, em um bate-papo, um dos integrantes fala sobre “assassinar deploráveis”. O adjetivo é uma alusão ao apelido que Hillary Clinton deu aos fãs de Donald Trump. Alguém comenta que seria melhor apagar a mensagem, uma vez que aquilo poderia causar problemas. Logo depois somos transportados a um avião onde uma óbvia elite saboreia caviar e champanhe. Repentinamente um homem cambaleando aparece no corredor do avião e acaba sendo assassinado ouvindo coisas como “você acordou antes da hora”. É o suficiente para entendermos o que vem a seguir: gente rica perseguindo e matando gente “pobre”(?).

Mas porque, então, eu falei da “tal sinuca ética”? A essa altura do roteiro – e durante boa parte do filme – a gente acaba, involuntariamente, torcendo pelo grupo das pessoas mais simples, sequestradas, aparentemente, aleatoriamente, e jogadas em uma mata, à própria sorte, enquanto um grupo de pessoas hipócritas altamente armadas vai matando, um a um, dos doze escolhidos, friamente e, muitas vezes, com requintes de crueldade. O que muda é que, em determinado ponto, o roteiro nos entrega que as pessoas escolhidas para serem mortas eram pessoas que nós mesmo consideraríamos tóxicas: ultra conservadores, homofóbicos, supremacistas raciais, disseminadores de fake news e teorias de conspiração e tem até quem cace animais ameaçados de extinção. “Pura escória” (será mesmo?).

Mas ok, vamos com calma, certo? Isso não quer dizer que eu ache que tá tudo bem matar a sangue frio pessoas com esse tipo de pensamento. Eu não acho mesmo! Talvez só um pouco… Ainda assim, não é uma atitude que devamos apoiar! E é claro que o filme extrapola quando coloca como assassinos a galera que é ultra liberal, que reclama o tempo todo de racismo e fala sobre representatividade, liberdade de expressão e direitos de minorias.

Ou seja, a mensagem do filme é clara em ser satírica. Não é nenhum Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, 2008) que pretende te fazer filosofar sobre direitos políticos e o armamento desenfreado da América. E é aqui nesse ponto onde ele se distancia da nossa “versão original brasileira”. E eu coloquei as aspas porque os autores de A Caçada já foram perguntados sobre as inspirações para o roteiro e, inclusive, se eles já assistiram Bacurau (sim, um repórter brasileiro fez essa pergunta e ainda recomendou o filme depois que ouviu a negativa como resposta). A diferença é que, apesar do tom forte de exagero de situações, que deixam escrachadas as intenções em Bacurau, nesse, temos um lado. E esse lado é claro. Aqui a gente fala sore opressão social, sobre um grupo de pessoas que se julga superior e entende que pode caçar outras pessoas por esporte porque essas, para a elite, não passam de animais descartáveis. Então torcemos pela – e vemos a – emancipação dos oprimidos quando a mesa vira e são os gringos que acabam sendo massacrados.

Em The Hunt o buraco é outro. E isso fica muito perceptível quando o primeiro assassinato do filme se dá com o salto de um sapato. E, se isso ainda não for o bastante pra perceber que o roteiro não se propõe sério, minutos depois nós vemos uma mulher, empalada por uma lança em um buraco no chão, continuar falando, ser tirada da lança e segundos depois ser explodida de volta pro mesmo buraco e, estando suficientemente consciente, mesmo tendo apenas metade do corpo, tirar a própria vida com um tiro na boca! É com esses absurdos que somos apresentados ao restante do elenco. Ou seja: mesmo com tons políticos e paralelos com a realidade americana em alguns pontos, The Hunt não se pretende sério, nem inteligente demais. Talvez seja um “terrir”. Eu, particularmente, classificaria como um filme de ação que ri de si mesmo – e da população americana.

A mais grata surpresa aqui fica por conta da protagonista. Bette Gilpin, que você deve conhecer de GLOW (2017-) entrega uma atuação altamente carismática. Ela é apática, meio doida e reconhece isso de si mesma. É badass até a tampa! E é esse seu jeitão meio despreocupado que faz a gente se apaixonar por ela. E ela realmente manda ver! A outra boa surpresa é a participação de Hilary Swank, duas vezes oscarizada pelos filmes Meninos Não Choram (Boys Don’t Cry, 1999) e Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004). Embora ela só dê as caras pertinho do final do filme, em uma luta com a protagonista que lembra muito a primeira cena de luta de Kill Bill: Volume 1 (Kill Bill: Vol. 1 – 2003), onde o personagem de Uma Thurman, nesse filme, batizada apenas como “A Noiva”, enfrenta Vernita Green. A própria Hilary, aliás, só topou o papel depois de conversar com os roteiristas e dizer que não aceitaria o trabalho se aquilo fosse algo sério, pois, pra ela, soava como piada.

The Hunt é um excelente filme de ação pra quem gosta dessa mistura de “tripas e risadas”. O filme é cheio de caricaturas, consegue entregar uma boa tensão e nos traz ótimos momentos. Uma pena, apenas, que o terceiro ato subestime o público com uma explicação longa e maçante, até mesmo sobre a analogia ao livro de George Orwell, já revelada antes com a aparição do porco e com o apelido dado à personagem principal. Eu penso que, se o expectador não leu o livro e não traz essa bagagem pra entender sozinho o que se passa na tela, de nada adianta explicar tudo pra ele de maneira didática – acaba empobrecendo a experiência, tanto desse, como de quem já vem com a bagagem literária. Mas nada que estrague a hora e meia na frente da tela.

Vale lembrar que o filme é dirigido por Craig Zobel, que já dirigiu episódios de  Westworld (2016 -), The Leftlovers (2014 – 2017) e Deuses Americanos (American Gods, 2017 -), e escrito por Nick CuseWatchmen (2019) e The Leflovers – e Damon Lindelof, que também trabalhou em Watchmen e The Leftlovers, além de escrever episódios para Phineas e Ferb (207 – 2015) e Lost (2004 – 2010).

O filme deveria ter estreado em agosto passado, mas foi adiado por conta dos incidentes à mão armada nos EUA que deixaram mortas 31 pessoas em duas cidades. A estreia americana aconteceu em 13 de março de 2020 e arrecadou apenas U$ 18 milhões. Os baixos números foram atribuídos à pandemia causada pelo novo coronavírus. O filme foi disponibilizado digitalmente uma semana depois e estreou no Brasil em 28 de maio.

E se, até agora, nada do que eu disse aqui te convenceu a assistir, fique com a última: o filme foi duramente criticado pelo presidente Trump em sua conta no Twitter. Donald escreveu: “A Hollywood esquerdista é racista no mais alto nível e tem grande raiva e ódio. O filme que irá estrear busca colocar lenha na fogueira e provocar o caos. Criam a própria violência e, depois, responsabilizam os demais. São eles os verdadeiros racistas, e são muito maus para o nosso país.” A produção disse que, apesar do adiamento e das críticas, nada foi alterado no roteiro. Pra mim, já é motivo suficiente.