Não é de hoje que animais nos fazem refletir sobre a natureza humana, Esopo já fazia isso muito tempo atrás. Afinal quem nunca ouviu na infância a história da lebre e da tartaruga ou da cigarra e da formiga? Depois dele nunca mais paramos com isso, vide todos os filmes da Disney e de outras empresas com animais de roupinha, como Robin Hood (1973), O Espanta Tubarões (Shark Tale, 2004) ou os mais recentes Sing: Quem Canta Seus Males Espanta (Sing, 2016) e Zootopia (2016), obra que mais se compara a Beastars (2019 – ) novo anime distribuído pela Netflix.
Baseado em um mangá de mesmo nome de Paru Itagaki, já mencionado aqui no SMUC na lista de melhores quadrinhos de 2019, Beastars se passa em uma sociedade de animais antropomorfizados, nos dias atuais, onde se dividem principalmente entre carnívoros e herbívoros. E provavelmente já é meu anime favorito da temporada, depois de maratonar os 12 episódios já parti para a leitura do mangá.
A história tem como protagonista o lobo cinzento Legoshi, um carnívoro de 17 anos que estuda em um colégio interno muito conceituado, onde um assassinato acontece. Um aluno herbívoro é assassinado por um carnívoro, mas por isso ser um tabu para a sociedade, o assunto é varrido para debaixo do tapete. Em paralelo, na noite seguinte ao assassinato, Legoshi perde o controle de seus instintos, atacando e quase devorando a coelha anã, Haru, por quem posteriormente vai acabar se apaixonando.
Os 12 episódios adaptam muito fielmente os primeiros 48 capítulos do mangá, parecendo uma mistura de coming of age com drama adolescente, se passando em uma escola, já que estas funcionam como micro sociedades ou reflexos da sociedade, acaba sendo o local perfeito para se refletir aquela em questão e sobre o que aguarda os personagens fora dela, na vida adulta. Teoricamente, a história é classificada como shounen (histórias para jovens meninos, geralmente com mais aventura), mas para mim parece muito mais um seinen (histórias mais maduras, para um público adulto, geralmente de drama) com todas as suas discussões sérias e maduras, seu ar melancólico e tudo muito pautado no diálogo, apesar de sim, termos cenas de luta.
Antes de tudo, sim, a história pode ser muito comparada com Zootopia. Beastars pode ser chamado de um Zootopia mais complexo, com mais conflitos e camadas, porque no mundo criado pela Disney com as presas e caçadores, tudo é realmente apenas preconceito, os caçadores não caçam, mas em Beastars, não é tudo tão perfeitinho assim, os instintos animais são bem reais e influentes. Se é uma cópia? Não. Itagaki já falou que pode sim ter sido influenciada por filmes da Disney por ter crescido os assistindo, mas ela começou a ter as primeiras ideias para sua história ainda no ensino fundamental e na faculdade fez Beast Complex, o primeiro mangá que escreveu passado em seu universo. Quando Zootopia foi lançado em 2016, ela já estava trabalhando em Beastars, mas não tinha começado a ser publicada.
Mas bom, voltando para o anime.
Na história, a divisão principal dos animais é entre carnívoros, mais fortes e feitos para matar, e herbívoros, mais frágeis e nascidos para serem presas, mas também existe outras fortes como caninos, felinos e aves, e outras menores como animais listrados, de lã ou de chifres. A questão do beastar, que é um trocadilho maravilhoso (beast, besta ou fera, be a star, ser uma estrela), não fica tão bem explicada, parece que o título se refere apenas a uma pessoa popular, mas se trata de algo realmente muito importante para a sociedade. Na segunda temporada será melhor trabalhado.
E claro, a primeira vista, o anime parece ser apenas mais uma história de casal, mais um romance proibido, mas fala sobre muita coisa: preconceito, bullying, slut-shaming, aceitação e rejeição. No centro disso tudo, temos Legoshi, um rapaz simples, tímido de andar encurvado e que tem medo da própria força, então sempre está contido, mas também temos seu oposto, o cervo vermelho Louis, herbívoro, de família rica, destinado a grandes coisas, popular, elegante e que despreza a própria fragilidade, odeia ser fraco e ter o corpo de uma presa.
Completando o trio de principais temos Haru, uma solitária garota mal falada na escola, mas que não deixa isso abalar sua gentileza. Sim, ela quem forma o tal casal com Legoshi que, podem me condenar, mas me lembra muito Crepúsculo (Twilight, 2008), toda sua questão de “e o leão se apaixonou pela ovelha”, o desejo assassino de matar e devorar o outro, mas temos em Beastars uma diferença que não pode ser rompida, Haru não tem como se tornar uma loba. E uma personagem que eu acredito que também merece ser mencionada é Juno, uma loba cinzenta que começa com menos destaque, mas vai ganhando importância ao longo da trama.
Os personagens são muito presos a quem eles são, ou quem deveriam ser. Alguns se conformam com isso, mas outros não. Todos são muito complexos, os sentimentos de Legoshi são muito debatidos, e quando reveladas as backstorys de Haru e Louis, ambas são muito boas. Louis para mim até então era só uma arrogante passivo agressivo, mas depois de saber sua história, fiquei realmente confusa sobre o que pensar dele.
A construção do universo é muito bem feita, as informações são dadas aos poucos conforme as coisas acontecem e os ambientes são mostrados, além de muita coisa podermos imaginar. Mas alguns detalhes são bem importantes, existe uma série de concessões entre os animais, os herbívoros fornecendo leite e ovos para os carnívoros em troca de não serem devorados, mas quando conhecemos o escuso mercado negro ou quando vemos a grande quantidade de assassinatos, descobrimos que a paz não é tão eficiente assim.
O anime tem muitas boas metáforas, as mais óbvias sobre preconceito, mas com outras é possível destrinchar e ir bem longe, como pensar em como os mais fortes comem os mais fracos, do mesmo jeito que no nosso mundo. Os mais fortes esmagando os mais fracos muitas vezes só porque podem. E existem até algumas situações que podem ter várias interpretações, várias camadas.
Uma sacada que me senti mal por ter demorado a perceber é a relação de Haru com sexo, já que ela é uma coelha e existe toda a questão de coelhos se reproduzirem muito e muito rápido, durante muito tempo se dizia que eles seriam os únicos animais além dos seres humanos que fazem sexo por prazer (o que não é verdade, vários animais fazem isso) e enfim, a revista playboy que tem como símbolo um coelho.
Mas talvez a mais interessante de se discutir seja a frase de Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do homem” e todo o seu debate sobre o homem nascer mau ou se tornar mau, viver em uma sociedade cheia de normas, regras, contratos sociais… É uma discussão que a série tem, e olha só que curioso, nosso protagonista é justamente um lobo.
Eu assisti toda essa primeira temporada dublada, por saber que no elenco estavam dubladores que eu gosto muito e fiquei feliz de estar tudo muito bem dublado, temos grandes nomes como Fábio Lucindo (a primeira voz do Ash, de Pokémon) e Samira Fernandes (a voz da Wendy, de Gravity Falls), mas pretendo sim reassistir tudo no áudio original, que pelo material de divulgação que vi, está muito bem feito também.
A direção do anime é boa, existe cuidado para como se trata cada momento e cada personagem. A fotografia é ótima e, nesse ponto, superior ao mangá, com modos muito criativos de se mostrar as cenas, como a história contada em muros no primeiro episódio ou se passando dentro da silhueta de um personagem. A trilha sonora com certeza é o maior destaque, todas as músicas são boas e cumprem perfeitamente seu papel.
Ainda sobre áudio, vendo algumas informações divulgadas pelo estúdio Orange, responsável pelo anime, a voz original foi gravada antes da animação estar pronta, como na verdade é feito por exemplo aqui no Brasil ou nos Estados Unidos, primeiro é gravada a voz e depois sincronizado os lábios dos personagens, mas ao que parece no Japão não se faz muito isso. Mas o estúdio optou por fazer, para ter a sincronia labial.
O estúdio é conhecido pelo uso da computação gráfica, o polêmico CG, que tantos odeiam, mas para mim depende muito de como é usado, já que em muitos animes simplesmente temos inserts CG do nada, mas Beastars é toda em CG, com o visual rabiscado lembrando o estilo do mangá, para poder ter esse efeito do 3D que parece 2D, lembrando um pouco o que foi feito nos inserts de Your Lie in April (Shigatsu wa Kimi no Uso, 2014-2015), mas existem momentos da série que realmente são em 2D, mas pouquíssima coisa, passa despercebido facilmente.
A animação é fluida, mas com uma taxa de frames baixa, ficando com um aspecto de stopmotion, mas na minha percepção isso foi feito para justamente chamar atenção para momentos em que animação é mais fluida, com taxa maior de frames, assim esses momentos chamam mais atenção e te prendem visualmente. Inclusive fiquei com a impressão que em alguns momentos foram usados captura de movimentos, mas não encontrei nada confirmando isso.
Não sei se por limitação do CG ou por escolha artística, os personagens não tem aquelas reações exageradas comuns de animes e mangás. As expressões faciais seguem uma linha mais realista seguindo as limitações dos rostos dos personagens. Durante os episódios também são experimentados estilos diferentes de animação para momentos de introspecção dos personagens ou flashbacks, e é claro, na linda abertura feita em stopmotion que eu não tive coragem de pular nenhuma vez.
Dá para perceber os momentos de economia do anime, por exemplo, quando trazem uma cena que acontece originalmente em um cenário que aparece apenas uma vez para um lugar que é mais usado sem perder o impacto, ou dando desculpas para se ter poucos figurantes em um ambiente, como um trem ter acabado de sair. Alguns desses pequenos detalhes fizeram até mesmo alguns momentos ficarem mais interessantes no anime do que no mangá.
E como falei da abertura, é justo falar dos encerramentos, sim, mais de um. Temos 3 ou 4 encerramentos diferentes durante os episódios, cada um com uma cor predominante e “falando” de um assunto em específico, com uma reflexão diferente, todos muito bonitos.
Mas obviamente, temos também nossa leva de problemas. A história introduz o assassinato logo no início e depois não fala mais sobre isso, igualmente Haru some por um tempo, talvez sendo no máximo mencionada. É um problema que já vem do mangá, a história se foca muito em Legoshi e esquece um pouco dos outros personagens e acontecimentos. Itagaki obviamente ama muito Legoshi, mas talvez não perceba como ela criou vários personagens incríveis sobre os quais queremos ver e saber mais.
Onde eu estou no mangá, infelizmente isso ainda acontece muito, apenas Louis chega a ter um pouco mais de destaque. É preciso lembrar que Beastars é o primeiro mangá de sucesso de Itagaki, ela tem uma ótima história em mãos, mas ainda lhe falta experiência, coisa que ela vai adquirir com o tempo. Na adaptação também foram cortados alguns elementos e momentos bem curtos ou rápidos, que na verdade poderiam ser cortados sem prejudicar a história, tanto que foram, mas que ajudam na construção de universo e para entendermos melhor a forma complexa como esses personagens se relacionam.
Tem também algumas partes um pouco mais chatas, como se a história quisesse introduzir tudo mais rápido possível e por um tempo pouca coisa acontece. Inclusive, achei um tanto mal introduzido o sequestro que acontece mais para o final da temporada, porque somos apresentados aos assassinatos, ao mercado negro, mas não situações desse tipo.
Vi que alguns se incomodaram um pouco com uma cena pesada envolvendo Haru e um personagem carnívoro e acho a discussão válida, mas sendo sincera, para mim, a cena foi igualmente desconfortável no mangá, mas de um modo diferente, inclusive como ela foi feita no mangá talvez tenha me impactado mais.
E temos, é claro, a questão da representatividade feminina de Haru e Juno, que realmente são vistas mais pela visão de um homem, um homem imaturo de 17 anos, mas ainda assim, um homem. É outro problema que vem do mangá, mas já bati muito nessa tecla, vocês já entenderam. Mas as personagens têm potencial, elas podem se tornar muito grandes e importantes se a narrativa permitir.
Beastars assim como tudo, tem suas falhas, mas não muda o fato de ter personagens cativantes, ótimas reflexões e uma boa história, a segunda temporada já está confirmada para 2021, então nos resta apenas esperar para descobrir que rumos que nossos animais adolescentes vão tomar.
Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.