Raio Negro: 1ª e 2ª Temporadas [PARTE 1] – Uma família de heróis negros

Em 2018 o canal CW estreou uma série sobre um super-herói aposentado, com duas filhas – uma delas adolescentes – e diretor de uma das mais importantes escolas de sua cidade. A série Raio Negro (Black Lightning, 2018 -) se destaca de outras séries de super-heróis modernas por trazer o protagonista do título como um homem maduro, além de ter uma predominância de personagens negros em seu enredo. Misturando elementos da cultura negra, uma narrativa focada nos dramas pessoais e também na família do protagonista, Raio Negro estreou em 2018 sua primeira temporada, que trouxe o herói aposentado voltando a suas atividades como combatente do crime e os efeitos dessa retomada na sua vida profissional e pessoal. Em sua segunda temporada, a série se aprofundou em causas já apresentadas durante o primeiro ano e fez com que o enredo não dependesse muito da introdução de personagens novos, apostando num elenco reduzido. 

O personagem titular, criado originalmente pelo escritor Tony Isabella e pelo artista Trevor Von Eeden, é Jefferson Pierce, interpretado por Cress Williams. Durante a sua jornada na primeira temporada ele lida com o retorno ao manto de Raio Negro, sabendo das consequência disso para sua família. Se torna irônica a forma como a maior razão dele voltar a ser Raio Negro é para salvar suas filhas de uma gangue com um poder cada vez maior na cidade de Freeland. Devido ao retorno do Raio Negro, a cidade se torna cada vez mais perigosa, pois o herói cria novos inimigos e lida com o retorno de antigos antagonistas. Ao mesmo tempo, como diretor de uma escola e uma figura reconhecida na sua cidade, Jefferson Pierce age usando dessa posição para combater os males como possível. Uma das maiores questões da série é sobre como não é necessário ser um super-herói para fazer algo para salvar o mundo ou melhorá-lo.

Ao seu lado, durante suas missões como super herói, o personagem de Cress Williams conta com a ajuda tanto de seu mentor Peter Gambi (James Remar) quanto com um um detetive da polícia local chamado Bill Henderson (Damon Gupton). Enquanto Gambi é o responsável pela tecnologia do traje do Raio Negro, Henderson passa boa parte da série sem o conhecimento da identidade secreta do herói. Ambos tem uma relação de companheirismo com o Raio Negro e de amizade com Jefferson Pierce. No caso de Gambi – um dos poucos personagens brancos recorrentes na série -, ele foi o responsável por criar Jefferson após a morte de seu pai.

Aprofundando mais no enredo da série, as relações estabelecidas pelos personagens são muito mais complexas do que havia sido previamente apresentado. A tecnologia provida por Peter Gambi à Jefferson termina sendo ligada ao envolvimento deste a uma organização governamental antagônica ao herói. O próprio personagem vai muito além de um ‘nerd da cadeira’ (termo roubado de Ned Leeds em Homem-Aranha: de Volta ao Lar possivelmente aplicada a todas as séries de herói do canal CW, o mesmo onde é exibida Raio Negro). É permitido a narrativa desenvolver o personagem de Gambi com um passado problemático ao mesmo tempo em que lhe é garantida uma redenção.

Colocar um homem negro como herói numa série própria é algo grande, mas ter esse mesmo personagem como o diretor de uma escola, mostrando como se pode salvar vidas dessa forma, também é algo extremamente importante. A série Raio Negro frequentemente aborda temas sobre a resistência da população negra, sua história e também sobre as opressões sofridas na modernidade. Os meta humanos (pessoas com poderes dentro desse universo de séries) presentes na série são fruto de experimentos realizados pelo governo americano na comunidade negra de Freeland, através de vacinas. Isso não vai muito além da realidade, onde recentemente foi sugerido que testes para a vacina contra o Coronavírus fossem feitos na África. 

Logo no primeiro episódio da série já somos apresentados aos conceitos de violência policial, sendo o próprio protagonista a vítima de tal violência. Ao colocar um homem adulto, diretor de uma escola, com suas duas filhas como testemunhas, sofrendo violência por parte de policiais, a série escolhe fazer uma denúncia a como as pessoas negras são tratadas nos EUA. A própria série, desde seus primeiros minutos, se mostrar ser não apenas sobre super-heróis, mas também sobre a vida e os abusos sofridos pela comunidade negra. Se passando em uma cidade vítima do poder de uma gangue conhecida como Os 100, a série inclui em sua trama e enredos protestos, passeatas, citações de líderes e referências ao movimento negro, etc. A proposta é ser antes de tudo uma série sobre pessoas negras, mesmo não sendo dotadas de super poderes, sendo heroínas e heróis. Lutando contra um sistema político, policial, social, criminoso, essas pessoas continuam a resistir.

 

Quando citando a importância das referências negras para a história, se torna essencial ressaltar a presença de pessoas negras não apenas na frente das câmeras. Salim e Mara Akil assinam a criação e produção da série. Dentre outros nomes da produção está também Oz Scott, que trabalhou como diretor na série, mas também em séries como Agents of S.H.I.E.L.D. (2013 -), Gotham (2014 – 2019) e Shadowhunters (2016 – 2019). Salim e Oz assinam, respectivamente, o primeiro e o segundo episódios da primeira temporada da série, assim como o último e o penúltimo também. Outros nomes de artistas negros associados a direção na primeira temporada da série são Michael Schultz, Mark Tonderai, Benny Boom, Bille Woodruff, Tannya Hamilton e Eric Laneuville. Durante a primeira temporada, apenas dois episódios são assinados por pessoas não negras, são elas Tawnia McKiernan e Rose Troche (conhecida diretora porto riquenha de filmes LGBTQ). A trilha sonora da série é assinada pelo compositor Kurt Farquhar

Falando sobre representatividade negra nas telas, o personagem anteriormente citado, Inspetor Handerson, é branco nos quadrinhos e na série interpretado por um ator negro. A importância de ‘racebending’ (dobrar ou mudar a raça, por assim dizer) um personagem criado anos atrás no quadrinhos deve ser mencionada. Nos quadrinhos, especialmente aqueles feitos a anos atrás, é sentida uma ausência de personagens negros devido aos problemas raciais presentes na sociedade àquela época. Os quadrinhos eram majoritariamente feitos por e para pessoas brancas, permitindo poucos heróis e personagens negros. Cada vez mais as adaptações em live action vem tornando personagens normalmente brancos nas obras originais, criadas em épocas onde pessoas de diferente etnias eram ignoradas ou invisibilizadas ou até vilanizadas, personagens de etnias diversas. Isso não é incomum em séries, mas se torna um problema quando os poucos personagens criados como étnicos são interpretados por intérpretes brancos, que já são uma maioria.

Desenvolvendo arcos maiores sobre questões raciais, a série ainda consegue estabelecer uma dinâmica interessante entre a família Pierce. Lynn Stewart (Christine Adams), a ex esposa de Jefferson, é uma renomada neurocientista e pesquisadora e o casamento dos dois acabou devido às atividades de Jefferson como Raio Negro. Lynn não aprovava os riscos corridos pelo então marido. Ao início ela enxergava as atividades “super-heróicas” de Jefferson como um vício, mas durante os acontecimentos da série ela passa a não apenas aceitar, mas também auxiliar o ex marido. A relação dos dois vai muito além de uma relação de ex cônjuges, considerando tanto a química quanto os sentimentos das duas pessoas envolvidas.

Presentes desde o começo da narrativa, estão as duas filhas de Jefferson e Lynn, Anissa (Nefessa Williams), a mais velha, e Jennifer (China Ann McClain). A primeira começa a série com uma vida estável ao lado da sua namorada e participando ativamente dos protestos realizados na cidade em prol da comunidade vítima dos 100 e também da violência policial. Por conta disso, Jennifer apelida sua irmã mais velha de Harriet, famosa abolicionista negra da história dos EUA. Durante a primeira temporada Anissa descobre seus poderes meta humanos que lhe fazem invulnerável a balas e ataques físicos e começa a agir como a super-heroína ‘Tormenta’. Após um encontro e um confronto com o ‘Raio Negro’, Anissa tem a verdade revelada sobre seu pai e seus poderes, logo então passando a agir ao lado dele. O interesse em ser um modelo para jovens lésbicas, especialmente negras, é algo frequentemente mencionado por Nefessa Williams.

Durante a segunda temporada a família se torna cada vez mais unida devido ao conhecimento amplo dos poderes e segredos por trás do símbolo ‘Raio Negro’. É interessante ver um super-herói que também é um pai. A série mergulha bem nas relações familiares e também na origem dos poderes. E é irônico como a família foi ‘separada’ pela existência do Raio Negro e como é devido aos poderes de Jefferson e os herdados por sua filha que cada vez mais toda família pode se aproximar mais uma vez. Ao mesmo tempo onde a família se torna um dos focos, a seus membros são permitidos tramas e enredos pessoais, indo desde investigações sobre drogas misteriosas, combates a inimigos do passado, a defesa de uma sociedade isolada atormentada por uma meta humana branca ou fugas passionais ao lado de namorados criminosos. 

Quando se trata de juventude rebelde, a filha mais nova, Jennifer, é uma razão constante de problemas durante os primeiros anos da série. Muito disso se deve a personagem ser uma adolescentes e a maioria deles não faz boas escolhas. Desde sua primeira aparição onde ela vai até o Clube 100 e se torna um alvo para a gangue forçando seu pai a agir como Raio Negro após anos, até usar de forma descuidada e irresponsável seus poderes. A personagem de China Ann McClain é, durante os primeiros dois anos da série, um dos elos mais fracos, mas ainda consegue proporcionar emoção através de seu enredo. Infelizmente a personagem tem seu arco muito limitado à sua relação com o namorado, Khalil (Jordan Calloway). Devido a natureza de seus poderes, a jovem tem muita dificuldade quando se trata de controlar e isso é cuidadosamente trabalhado ao longo da segunda temporada.


LEIA EM BREVE A SEGUNDA PARTE DA RESENHA SOBRE RAIO NEGRO

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