– contêm spoilers das duas primeiras temporadas da série –
A série espanhola original Netflix Elite estreou em 2018 no serviço de streaming acompanhando a vida dos jovens estudantes da escola particular Las Encinas, trazendo em seu enredo uma investigação de assassinato. Dentro da escola secundarista para a elite, a série explora os dramas adolescentes enquanto ao mesmo tempo escapa muito de clichês e aborda temas mais progressistas. São claras as referências narrativas de outros dramas adolescentes na história da série e também em sua estética, mas, ao invés de dar muito errado, esses elementos funcionam perfeitamente dentro do show.
Enquanto a primeira temporada teve muita aclamação por seus temas abordados e por subverter extremamente os clichês do gênero de drama adolescente, a segunda temporada não alcançou o mesmo sucesso. Devido a problemas de saúde um membro do elenco foi forçado a se retirar da produção e a narrativa se desenvolveu de forma diferente do planejado ao final da primeira temporada. Com novos relacionamentos não tão aprovados pelo público e nem tão bem desenvolvidos, e por outro lado tornando casais bem recebidos em relacionamentos mais tóxicas.
Desde a primeira temporada a série gira em torno do assassinato de Marina (María Pedraza), personagem HIV positiva e rica, e como os demais personagens foram afetados pelo mesmo. Na primeira temporada a série, através de flashfowards (avanços na linha temporal dos acontecimentos dentro da história), levanta o questionamento sobre quem poderia ter assassinado Marina. Já na temporada seguinte o personagem Samuel (Itzan Escamilla) foi dado como desaparecido e inicia-se uma investigação comandada por uma inspetora policial (interpretada por Ainhoa Santamaría), os episódios da temporada são uma contagem sobre o tempo desaparecido do personagem.
A terceira temporada começa de onde a segunda terminou, do retorno de Polo – personagem bissexual, e o assassino de Marina – para Las Encinas. Isso gera não apenas conflitos de Polo (Álvaro Rico) com os outros personagens da série, mas entre os próprios personagens. Os maiores afetados pelo retorno de Polo são Guzman (Miguel Bernadeau) – irmão de Marina – e o próprio Samuel, responsáveis pelos acontecimentos a Polo ao final da segunda temporada.
Com nome de personagens no título, a terceira temporada retorna à uma estrutura semelhante da primeira e aborda o assassinato de um dos personagens. Para concluir a saga das três temporadas, a narrativa começa com um acidente e a morte de um personagem. Durante todo o primeiro episódio a identidade do personagem é mantida em segredo, mas o enredo decide fechar um ciclo ao matar Polo. Ao longo da temporada vamos descobrindo sobre o quanto cada personagem poderia ter uma razão pessoal para o matar.
Começando pelo episódio de Carla (Ester Espósito), com quem Polo namorava durante a primeira temporada e a maior beneficiada pela morte de Marina. Carla foi durante a primeira temporada uma antagonista, manipuladora e reagiu friamente às ações de Polo sobre Marina. O desenvolvimento de Carla como uma personagem fria foi abandonado na segunda temporada, onde ela carregou um maior foco. Nessa terceira temporada ela passa por um arco envolvendo depressão e uso de drogas, por se tornar vítima de seu pai. Por quase toda a temporada ela vive um enredo a parte do principal, se mantendo distante da situação de Polo.
Um dos enredos mais surpreendentes da primeira temporada, sobre o envolvimento do trisal Polo, Carla e Christian (Miguel Herrán), terminou subvertendo toda a proposta e relação dos personagens. Nessa terceira temporada, onde o relacionamento é mais uma vez mencionado durante a nova relação a três estabelecida por Polo, algo mencionado mais à frente. Essa temporada dá a Carla um novo interesse amoroso na forma de Yeray (Sergio Momo), uma relação na qual ela é forçada pelo pai, mas a evolução da personagem lhe coloca numa posição de poder para o responsável de seu sofrimento desde a primeira temporada.
É necessário aqui defender o fato de que Carla não deixa de ser uma adolescente desde o começo de toda essa história. A pressão causada por seu pai durante a primeira temporada, com medo de seus envolvimentos criminosos, e o medo de perder sua fortuna a colocam numa posição difícil. Juntando isso aos dramas pelos quais a personagem passa, mesmo durante a primeira temporada, onde ela é responsável pela manipulação dos personagens Christian e Polo. Sinceramente teria sido interessante ter visto os três se desenvolvendo como trisal ao mesmo tempo enquanto encobrem um crime, mas são águas passadas.
A série sempre teve em Lucrécia (Danna Paola) e Nadia (Mina El Hammani) duas personagens rivais, desde pelo afeto de Guzman quanto pela posição de melhores alunas. Enquanto a rivalidade de ambas durante as primeiras temporadas flutuava mais pendendo para uma briga de duas mulheres por um homem, na mais recente temporada o foco é inteiramente acadêmico. Lucrécia lida com as consequências de seu relacionamento com seu irmão Valério (Jorge López), outra trama largada majoritariamente nessa temporada. A produção da série pode ter compreendido o quanto incesto é controverso até quando se aborda assuntos mais progressivos.
Outra personagem cujo enredo muda e não se trata apenas de ser afim de outro rapaz é o de Rebeca (Claudia Salas) cuja trama viaja pela sua relação com a sua mãe – uma traficante de drogas. O medo da personagem em se tornar como sua mãe enquanto ela é forçada a praticar atividades semelhantes e coloca em perigo a vida de outra pessoa é uma trama capaz de aproveitar melhor a personagem do que seu desejo pelo personagem Samuel. Elite parece desenvolver de forma mais aprofundada em sua terceira temporada a maioria de suas personagens femininas para além dos seus relacionamentos ou sentimentos afetivos.
Uma das coisas mais importantes feitas por Elite se trata pela forma como a série aborda sexualidade. Em séries como Gossip Girl (2007 – 2012), uma das séries semelhantes a Elite, temos vários personagens e vários relacionamentos sexuais e amorosos entre os mesmos mas essas relações são sempre entre héteros. Elite não apenas tem como antagonista um personagem assumidamente bissexual, como tem em sua terceira temporada o desenvolvimento de um triângulo amoroso protagonizado por três personagens gays. Além disso, temos confirmação da não heterossexualidade de uma das personagens femininas principais, mesmo que só por uma conversa.
Sempre levando em consideração a representatividade é importante pensar qual o tipo de relação não heterossexual é levada ao público. Durante a segunda temporada o personagem Ander (Arón Piper) é diversas vezes desrespeitoso e verbalmente violento contra o seu namorado Omar (Omar Ayuso) e as atitudes se repetem na terceira. Sempre existe algum motivo maior pelo tratamento problemático por parte do Ander, seja a pressão de saber o segredo de Polo ou então sua doença. Isso ainda não justifica erros de seu namorado, especialmente durante a última temporada, mas é importante considerar a forma como o personagem branco tem o hábito recorrente de destratar o personagem muçulmano com quem se relaciona.
O personagem de Ander é posto durante essa temporada por uma grande provação na forma de uma doença terminal. É um marco a presença de personagens LGBTQ como os de Elite, cuja história não gira ao redor de ser LGBTQ ou ser aceito por ser LGBTQ. A série nos dá tramas profundas sobre esses personagens, algo por muito tempo negado a personagens não heterossexuais dentro de séries ou filmes. Nessa temporada principalmente, por uma de suas características ser não ter protagonistas da história, o personagem de Ander é capaz de ser ainda mais aprofundado. A escolha de um enredo tão pesado para um personagem tão jovem e como o ator é capaz de atingir um nível digno de aplausos é impressionante.
Ainda abordando uma questão de representatividade, a série levou duas temporadas até que fossem apresentados personagens negros. Mesmo apresentando esses personagens, na forma de Malick (Leiti Sène) e Yeray, terminou os submetendo a relações onde eles se tornaram estepes para o desenvolvimento ou benefício de personagens brancos da série. A representação dos dois personagens ainda se torna questionável a partir do momento onde o desenvolvimento deles não existe, eles apenas aparecem para gerar desenvolvimento para outros personagens ou relações. Pouco se aprofunda dentro desses personagens fora das relações afetivas estabelecidas por eles. Nos são dadas informações deles, mas há poucas, senão nenhuma, transformação ou desenvolvimento dos mesmos.
Elite cumpre desde sua primeira temporada um papel de representar relacionamentos em formato de ‘trisal’ e na terceira temporada desenvolveu de forma mais profunda o relacionamento em questão. Mais uma vez partindo do conceito de Polo e sua namorada, nessa temporada representada por Caeytana (Georgina Amorós), se envolvendo com um rapaz. A diferença entre ‘Polo x Carla x Christian’ e ‘Polo x Valério x Cayetana’ é a forma como os personagens já não parecem estar descobrindo sua sexualidade, tendo em Polo e Valério dois homens assumidamente bissexuais. Talvez pudesse ter sido algo melhor desenvolvido com mais tempo, mas o relacionamento dos três garante cenas realmente memoráveis e especialmente fofas. A Disney parece estar fazendo a adaptação animada chamada ‘A Fraude, o Assassino e o Traficante’.
Apesar de algumas falhas, Elite consegue em sua terceira temporada desenvolver mais os seus personagens e o companheirismo entre eles. Aos poucos durante a temporada os laços formados são mais de amizade e os romances se tornam menos interessantes de se assistir. Se a intenção da série se mostra ser estabelecer esses colegas de escola como uma família, mesmo de forma extremamente disfuncional, ela consegue atingir seu objetivo. Mesmo assim, a série apresenta um grupo de adolescentes cujas vivências são capazes de abordar elitismo, racismo, meritocracia, preconceito de classe, raça e gênero. Pode nem tudo ser perfeito, mas Elite consegue romper muitas barreiras ao longo de sua história.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.