Pica, picanismo ou alotriofagia, corresponde a uma síndrome na qual a pessoa sente apetite por objetos e substâncias não comestíveis. O portador pode apresentar diversos tipos de picanismo conforme o que é ingerido, assim, adentramos ao primeiro longa-metragem escrito e dirigido por Carlo Mirabella-Davis, e o curioso é também seu título: Devorar (Swallow, 2019). Envolto numa particularidade, o filme é mais um daqueles independentes que tende a ser muito um “ame ou odeie”. Seja como for, falar sobre liberdade é tão doloroso quanto engolir um objeto.
Iniciando com um belíssimo plano aberto, o filme nos da a contemplação da protagonista Hunter Conrad (Haley Bennett) apreciando a visão do arredor numa sacada, o diretor nos manifesta: ela gosta do cabelo, de onde mora, de cuidar da casa e do esposo, por isso se prepara para o jantar importante em que Richie (Austin Stowell) é nomeado Diretor Executivo da empresa dos pais. O que parecia ser um retrato de um casal que se ama, muda quando longe de companhias cortejadas, o carinho e amor de Richie não é recíproco com Hunter. O choque é quando a típica dona de casa, grávida, demonstra um estranho gosto por engolir objetos.
“Como se sente ao engolir algo”?, “Acho que bem”. “A dor a incomoda? Algumas coisas que engoliu foram afiadas…” Sempre que questionada sobre sua alotriofagia, os diálogos são interrompidos e fica só a sugestão e pedaços do que formaria a causa da obsessão: enquanto Hunter aparenta sempre estar bem de espírito, quando a questão é falar de si, é notável uma barreira para acessar o interior; uma timidez para se pôr pra fora e até encontrar espaço para isso. Ao tempo que, para os pais de Richie e para o próprio é normal se a constrangeram, se a mãe diminui Hunter em toda oportunidade que tem, se Richie teve sua gravata de seda passada. Pra eles, Hunter nada mais é do que uma sortuda por casar com Richie e que o bom é que seja a boa esposa, que bom poder dar luz a um filho!
A par da atuação da fabulosa Haley, a cada vez que Hunter fica com a face corada quando posta contra a parede, o diretor arrasta o telespectador para perto do desconforto que a jovem moça quer lidar: com quem falar? Com quem desabafar? E a única solução à disposição é engolir em seco o objeto tentador a sua frente. “Você se sente feliz ou finge”? Algo afiado pra dentro. Um abraço que caiu como uma luva, bateria pra dentro. É como se diante das diferentes emoções, vale um objeto diferente para digeri-las. E acumular tantas coisas no estômago equivale a reunir tudo que recebe no dia: o bom e o ruim, o doce e o amargo, o elogio e a desfeita, a vontade e a repressão para estar no controle acima do que consegue ter em casa, do marido e sogros. Há até quem diga que não engole sapo.
Ficar dentro desse âmbito sufocante, visualizar as cenas, se assemelha a testemunhar um evento familiar que discorda e não poder fazer nada a respeito: Hunter está ali, curtindo a sua companhia, seu celular, e a maravilhosa comida que sabe fazer, para agradar a quem gosta, mas se tenta dizer como sente, ou que a aflige, ou se permite saltar da caixa, o golpe para reprimir é dado.
A graça é que Carlo soube transpor bem como os vícios, as compulsões, surgem em momentos conflituosos que estamos enfrentando e o que melhor sustenta esse longa intimista, sem dúvidas, é o talento de Bennett e seu domínio sobre a personagem. Porém, durante o exercício, a questão é inevitável: o que mais há para devorar? Assim, infelizmente, o cineasta corre para uma resolução um tanto que familiar — e se não foi previsível ao extremo, eu tive um déjà vu assistindo — ao colocar um confronto em prol do ultimato de que Hunter precisava para se sentir completa: enfrentar o que incomoda.
Dentro do que seria mais confortável, um final fechadinho e otimista não poderia cair melhor após tantas substâncias e feridas para se curar mais rápido, mas é fato que Swallow perde um pouco do charme e simplicidade com o qual se iniciou, uma vez que já não sabia mais para onde ser explorado e partiu para um desfecho seguro o suficiente para Hunter e que também não tivesse mais desafios para o público ser devorado.
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.