O filme Harriet (2019), dirigido por Kasi Lemmons, conta a história de Harriet Tubman, uma mulher negra responsável por ter lutado não apenas por sua liberdade durante a escravidão, mas também por ter ajudado diversos escravos a se libertarem através da rota de Underground Road durante a Guerra Civil dos Estados Unidos. A cinebiografia sobre a ativista dos primórdios do movimento negro chegou aos cinemas ano passado e trouxe a atriz Cynthia Erivo no papel titular do filme.
A obra não é o primeiro filme feito sobre escravidão, mas consegue se destacar entre outros trabalhos com a mesma temática por alguns fatores importantes, dentre eles trazer uma heroína negra abolicionista e ter um mulher negra como diretora. Toda a narrativa da protagonista e sua história não é sobre ser uma sobrevivente aos abusos sofridos enquanto escrava mas nos entrega uma jornada da heroína historicamente conhecida. Após muito tempo em desenvolvimento não é de se surpreender o quão bem lapidado o filme acabou sendo.
Trabalhar com figuras históricas é um terreno bem arriscado, mas o filme consegue contornar bem muitos dos possíveis problemas. Acompanhar os anos de jornada da heroína Harriet Tubnam não poderia ter o mesmo peso e a mesma alma sem todo o tempo de tela da obra. A história americana deve muito à protagonista desse filme e é necessário enaltecer o peso para a mesma carregado por ele. Por isso mais uma vez é necessário parabenizar a preocupação da produção em trazer a visão de uma mulher negra para contar essa história.
A capacidade do filme de mostrar o sofrimento dos escravos sem essa imagem e esses fatos terem um olhar fetichista é notável. Uma imagem bem recorrente de filmes sobre escravidão é a de escravos sendo torturados das mais diversas formas. Enquanto o filme trabalha sobre como a escravidão foi um período horrível para o povo negro, se distancia da ideia de mostrar esses corpos negros sendo constantemente torturados. No filme podemos ser imersos na cultura e nas vidas dos personagens, não permitindo se imergir na ideia de por serem escravos eram apenas isso.
É exatamente desta cultura que vêm as músicas presentes no filme, uma das quais foi indicada ao Oscar de Melhor Canção Original , Stand Up, por Cynthia Erivo. Somos mostrados a família de Harriet, sendo eles uma enorme parte de sua motivação para ajudar escravos a fugirem. Vanessa Bell Calloway interpreta a mãe da protagonista, Rit Ross, enquanto o pai dela, Ben Ross, é interpretado por Clarke Peters. Um importante detalhe sobre a vida de Tubnam é ela ter escolhido seu nome uma vez tendo se tornado uma mulher livre, antes disso ela era Araminta ‘Minty’ Ross.
Existe muito de poética dentro do filme, tanto no uso da narrativa de alternar entre presente e futuro através de visões da personagem protagonista e a dualidade entre divindade e um traumatismo craniano ocorrido na infância. As músicas também aprofundam ainda mais a alma do filme, nos permitindo mergulhar mais nos personagens de uma forma quase inesperada. A presença do divino na narrativa é bem utilizada e torna evidente a importância da fé de Tubnam para sua jornada.
Outros personagens também se fazem presentes no filme, permitindo uma maior imersão no universo histórico. Janelle Monáe dá vida a personagem de Marie Buchanon, uma mulher negra que cresceu em liberdade e suas interações com a personagem principal são um dos pontos mais valiosos do filme. O personagem interpretado pelo ator Leslie Odom Jr. é mais um elemento importante para a narrativa do filme e para a própria história da protagonista, sendo ele William Still.
O abolicionismo foi um dos pontos mais cruciais da Guerra Civil americana e o filme aborda de forma cuidadosa a realidade vivida nesta época. A dicotomia mostrada entre aqueles negros ainda escravizados e os livres é inclusive uma importante ferramenta de apresentação da história. Mostrando donos de fazendas escravocratas como antagonistas, ‘Harriet’ cumpre o objetivo de contar a história da heroína Harriet Tubnam e como ela foi importante para o povo negro durante essa difícil parte de sua história.
Toda a trajetória da figura histórica mostrada no filme carrega em si um enorme peso, uma linda mensagem de liberdade e de luta. ‘Liberdade ou morte’ é a última frase dita por Minty antes de embarcar para uma aventura de transformação e de libertação. Kasi Lemmons entrega um filme com um grande valor histórico, mesmo que um tanto carente de maior personalidade.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.