MOSTRA PERCURSOS: Sessão “Currais” (25/10 às 18h)

A Mostra PERCURSOS é uma ação de docentes e discentes do Curso de Cinema e Audiovisual do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC), que tem por objetivo dar visibilidade aos trabalhos cinematográficos produzidos pelos alunos do curso, além de estimular o diálogo entre esses jovens artistas e a sociedade. Chegando à sua nona edição em 2019, a Mostra PERCURSOS vem abrindo espaços de exibição e reflexão crítica sobre os rumos apontados pelas produções do curso de Cinema e Audiovisual da UFC.

Nesta edição, nós do Só Mais Uma Coisa, publicaremos uma resenha, escrita por alunos e ex-alunos do curso, para cada uma das sessões da Mostra, que acontece do dia 24 a 26 de outubro, no Cinema do Dragão, em Fortaleza.

Para mais informações acesse o site (www.percursos.ufc.br/2019) e as redes sociais da Mostra.


MULTIFOCULADORA, de Ed de Vortex, é um poema visual que vira toda sua narrativa a poluição de informação, com sua mise-en-scene movimentada, além de comparar o pensamento com a tecnologia, fazendo um análogo com programas de computador. Quase como uma mente que se mistura com uma inteligência artificial. MULTIFOCULADORA é um recorte do pós-moderno tecnológico que analisa a relação do humano emocional nele.

Nos Quintais do Mundo, de Fabienne Maia, é um documentário que retrata a pobreza usando um estilo narrativo de imagens de arquivos, recortes de jornais e filmagens que emulam arquivo, une um sentimento meio jornalístico que se afasta mas também demonstra uma sensibilidade com o local e acontecimento. E mesmo com esse olhar analítico, traz uma forma de filmar muito singela e sincera. No fim, a estética e as decisões narrativas enriquecem o documentário e agregam a experiência.

Através de uma narrativa simples, o documentário 30.05.19, de Ezequias Andrade, Ianna Leal, Micaela Ramos e Sara B. Jales, consegue passar uma ideia de pensamento de manada, que contraria o normal (que esse pensamento coletivo é ruim e alienante) e dá um ar de acolhimento. Um grito de união através da revolta, feita para os nossos tempos, um recorte da atualidade. A união entre o ficcional e o real funciona muito para criar esse limbo de reflexão e nos colocar no lugar do principal.

“30.05.19”, de Ezequias Andrade

Construíndo um uma linha lógica entre eventos, o documentário Movimento Estudantil, de Wilker Paiva, traz uma análise que, com um viés bastante claro e partidária, demonstra um grande controle de informações e na forma de colocá-las em tela. Trazendo a interseção entre narrações expositivas e imagens, consegue entregar uma premissa clara e usar de argumentos fortes para provar o seu ponto. As vezes funciona quase como uma colagem de fatos, sobrepondo filmagens que se respondem, se contradizem ou se explicam.

Todos Nós Moramos na Rua, de Marcus Antonius Melo, traz uma dualidade que é um análogo do local de vivência do sujeito tema do curta. O centro da cidade é construído através de dois mundos diferentes que mudam do dia para a noite e o documentário faz muito bem o trabalho de mostrar isso. Trazer um material diversos que vai de desabafos, vivências e poemas sobre a vida do morador de rua enriquece muito a obra, pois consegue tocar as mais diversas pessoas e alertar sobre uma parte da sociedade que é ignorada. Um documentário que a mise-en-scene é construída para aproximar o espectador do objeto de estudo desde o primeiro minuto, nunca soando simplesmente analista, mas com uma sensibilidade com o indivíduo, de cada um que aparece na obra para falar de sua vida.

Por Castro Arnold


BRUXOS SAEM DOS QUINTAIS DO MUNDO, MOVIMENTAM-SE PELAS AS RUAS NA COMPANHIA DE ESTUDANTES E NUM PASSE DE MÁGICA CRIAM UMA MÁQUINA DE OLHAR PARA TODO CANTO E PRODUZEM IMAGENS.

Curral – cercado para confinar animais. Normalmente, o curral se localiza na parte de trás do terreno, ou seja, no quintal. Seja em Horizonte ou Pacoti, é comum encontrá-los nos quintais do interior do Ceará. Curral, espaço de movimento delimitado e limitado. Sair do curral não significa necessariamente “sair pra rua e ganhar o mundo”.

Estaria Ed de Vortex preso em sua obsessão de encontrar uma máquina que lhe permita olhar para todos os cantos? Por entre sons metálicos e uma narração sem variação vocal, temos a câmera seguindo seu fluxo errante. Através de primeiros planos desfocados, ela capta piso, parede e escada rolante. É como se estivéssemos num ambiente fechado, um curral!

“Nos Quintais do Mundo”, de Fabienne Maia

Estaria a dona da voz over de Nos Quintais do Mundo enclausurada em seu lar por conta de problemas enfrentados por nossa sociedade, como a corrupção no país e violência na RMF? De sua janela, ela vê o mundo a distância e dentro de casa, o mundo chega até ela através da TV, de fotografias e notícias de jornais. Seria o medo um tipo de cerca que não a deixa se aproximar do mundo?

Temos o documentário de Wilker Paiva, uma denúncia contra a burocratização do movimento estudantil, e o próprio autor é uma testemunha ocular dos fatos ocorridos no movimento estudantil da UFC nos últimos anos. Presenciou atos de corrupção e violência no meio. Esteve ele isento destes atos? Como olhar um ambiente de fora quando se está dentro? Quem tá de fora é diferente de quem está dentro. Isto é bastante lógico quando estamos falando de curral.

E o personagem principal de 30.05.19? Sozinho e cercado de gente por todos os lados. Para onde vai? Segue a multidão, sem questionar. Aquele que entra e sai dos currais tem conhecimento do seu destino?

“Movimento Estudantil”, de Wilker Paiva

E os bruxos Maria, Wagner e seu Pirrita – protagonistas do documentário de Marcus Antonius? Durante o dia, praticamente invisíveis aos olhos de quem passa. E a noite, visíveis entre os que ficam nas ruas do Centro. Quem cuida deles?

E o Centro? A cada dia que passa, sofre um abandono paulatino do poder público. Assim como os bruxos que nele habitam. Seria o Centro um espaço sem cercas que não recebe o devido cuidado, assim como seus moradores em situação rua? E estes, quando são “tangidos” pelas autoridades, onde fica a porteira que lhes dá a garantia de que estão num lugar seguro?

Se até aqui, minha análise comparou de maneira simplória ou desrespeitosa as obras dessa sessão com o curral, peço desculpas. Não é nossa intenção, mas quero continuar em minha análise. Nos currais há violência, luta de classes, denúncia, abandono e invisibilidade? Não posso afirmar, mas nas obras que vimos há. Curral prende animais, não prende imagens.

Na definição de curral citada acima, aparece o verbo “confinar” que pode significar “prender, apresar”. Quero ir além dessa definição. O verbo significa também “fazer fronteira (com)/ aproximar-se muito (de)” – no sentido figurativo. É nesse sentido que compreendemos o nome desta sessão e a relação que existe entre as obras que a compõe.

“Todos Nós Moramos na Rua”, de Marcus Antonius Melo

É nas aproximações – não estamos falando de comparações – que as obras se potencializam. Manifestações e passeatas iniciadas no bairro Benfica, o documentário Movimento Estudantil se aproxima muito com 30.05.19. Muito mais do que registros e compilação de material de arquivo. São documentos históricos de uma época cheia de convulsões políticas. Wilker e Ezequias com sua trupe de realizadores são testemunhas de uma época. No caso de Wilker, é um dedo na ferida de cabeças velhas inseridas no movimento estudantil. Doa a quem doer, inclusive, aqueles que compartilham a hora do almoço no RU com o realizador. Alguém viu o personagem Joel no documentário de Wilker? Tenho a sensação que sim! Bem na hora da ocupação da reitoria da UFC. As duas obras fazem fronteiras com as ruas de Todos Moramos na Rua. Se aquelas passeatas tivessem chegado ao Centro no início da noite, os manifestantes iriam presenciar Pirrita sentado no seu banco, dando entrevista ao documentário.

Tivemos a sensação que o som metálico de Multifoculadora invade o início de Nos Quintais do Mundo com aquela faca sendo amolada. As vozes over das duas obras não narram, elas transmitem sentimentos. Se há uma missão nessas obras, a de Multifoculadora seria a busca por uma consciência que o ajude a entender o que está a sua volta – a multiconsciência. Em “Nos quintais”, seria denunciar as narrativas moralistas impostas por nossas elites mesquinhas, daí surge a necessidade de produzir uma imagem além da luta de classes. Ao mesmo tempo em que contesta a TV, ela mostra uma realidade violenta – sem usar imagens de violência – na periferia que as elites não querem enxergar.

“Como produzir imagens ..?” pergunta a voz over várias vezes. A própria obra responde sua indagação com imagens do quintal, da rua e bruscamente, surgem berimbaus aos céus! Sinta-se livre para produzir suas imagens!

E por fim, temos a força dos depoimentos e rimas dos bruxos do documentário de Marcus Antonius. Um trabalho que dá voz a quem não tem voz, sintonizado com um problema que se agrava cada vez em terras alencarinas – o abandono do outro. “Dividir e compartilhar” é a lição que Pirrita nos dá para sobrevivermos nas ruas. Dividir e compartilhar com o outro. Eis uma boa lição para quem busca uma máquina que quer ser todo mundo, para o movimento estudantil superar suas divergências, para que os quintais do mundo ganhe consciência de classe, que a gente se encontre no outro. “Eu sou gente. Nós somos gente e gente é para ter teto” declama Walter e eu completo: Nós somos gente que produz imagens e filmes foram feitos para serem vistos e não para ficar guardados em currais.

Por Luca Salri, diretamente do front de “Por um cinema possível”