Recentemente estreou a segunda parte da série O Mundo Sombrio de Sabrina (Chilling Adventures of Sabrina, 2018 -) contando com nove episódios. A história prossegue de onde a primeira parte (leia nossa resenha aqui) e o especial de Natal nos deixaram, Sabrina agora tendo assinado o Livro da Besta e lidando com essa presença constante do Senhor das Trevas em sua vida. A atriz Kiernan Shipka tem uma chance maior de brilhar nessa temporada, por sua personagem não ter um enredo centrado em agradar algum macho.
Sinceramente a vida romântica de Sabrina, enquanto se faz parte constante do enredo, não ocupa um lugar central como aconteceu na primeira temporada. A mudança de ares para a Academia das Artes Ocultas é muito bem vinda, por trazer narrativas mais interessantes que os apresentados à audiência nos episódios na primeira parte. Dentro da Academia, os escritores optaram por distanciar ainda mais a personagem principal de sua “amirrival”, Prudence Night (Tati Gabrielle).
Um dos maiores pontos positivos da série desde seu primeiro episódio do ano tem sido exatamente o papel das mulheres dentro desta instituição. Apesar disso, a série ainda falha muito quando se trata de lidar com os laços de suas personagens femininas. Ao longo da temporada mal vemos Sabrina tendo uma interação tridimensional ou bem desenvolvida com outra personagem feminina. A própria Prudence aponta para Sabrina o fato das duas não serem amigas, pois Sabrina só a procura quando precisa de algo.
A própria Sabrina não deixa de usar recorrentemente as pessoas de seu convívio para atingir determinados objetivos, se fazendo ausente em muitos momentos importantes das vidas dos seus amigos mortais por isso. Necessário apontar uma vez sobre o quanto o enredo da parte mortal da vida de Sabrina é melhor desenvolvido nesses episódios finais da temporada. Roz em particular, com a perda de sua visão e como a própria lida com isso é um dos pontos mais reais da série. Seu envolvimento romântico com outro personagem importante da série parece mais ser um tapa buraco – para os dois personagens – do que um enredo propriamente dito. A atriz Jaz Sinclair representa muito bem os conflitos passados pela personagem, assim como a mesma se adaptando a fazer uso de seu ‘tinido’ para ajudar os demais.
Necessário e importante parabenizar não só a forma como a narrativa lidou com a transição do personagem Theo, mas o fato de como o ator não binário Lachlan Watson teve toda a oportunidade de brilhar no papel. É de aquecer o coração todo o enredo e como seus amigos e especialmente seu pai – único familiar vivo – lida com sua transição. A forma como não só Theo – antes Suzie – mas os demais personagens do núcleo mortal da história se encaixam e são capazes de se destacar e serem importantes dentro de um enredo envolvendo magia e satanismo é surpreendente.
Desde os primeiros episódios desta recentemente liberada parte da série, somos apresentados à história de Lilith e Lucifer. Como sabemos após o final da primeira parte, a senhorita Wardwell (interpretada pela talentosa Michelle Gomez) não é apenas uma bruxa ou serva de Satã mas a mãe dos demônios e destinada – a seu ver – a sentar ao lado de Lucifer no Inferno. O enredo trazia a personagem como alguém submissa à Lúcifer e disposta a tudo para ser ela quem sentaria ao lado dele no Inferno, até destruir a jovem Sabrina. Uma das maiores críticas à série era exatamente a forma como a personagem de Lilith estava voltada contra Sabrina e não contra o responsável por toda essa bagunça, o Senhor das Trevas. Aos poucos a temporada evolui essa relação entre Lilith e Lúcifer, inclusive introduzindo a figura de Adão (ou Adam) na vida da personagem e a fazendo flertar com a ideia de ter uma vida normal e viver o amor longe dos planos de Lúcifer. Lilith merecia e merece mais do que lhe foi dado e fomos apresentados a uma personagem digna de ir lá e destruir todos em seu caminho para conquistar o que quer.
Embora as interações femininas nem sempre sejam das melhores ou sequer tão presentes quanto deveriam, é positivo o fato de termos vários episódios voltados para apontar o quão errado é todo esse sistema patriarcal e misógino existente nessa estrutura antiga – no caso a Igreja da Noite mas o mesmo pode ser aplicado a inúmeras outras estruturas e instituições. O papel de Lilith na criação de tudo, o papel de Sabrina dentro da nossa narrativa, o papel de Prudence dentro da escola, todos esses e muitos outros são papéis extremamente importantes. Sabrina questiona desde o primeiro episódio dessa nova parte o por quê de mulheres não serem permitidas a ocuparem posições tão importantes quanto a dos homens dentro da Igreja da Noite. Isso a faz ganhar o apoio de Prudence e também o ódio daquele que viria a ser o antagonista nos vindouros episódios, Padre Blackwood (Richard Coyle).
Enquanto temos uma personagem feminina lutando ardentemente para ser ouvida e para quer as demais mulheres possam ter um tratamento igualitário, somos apresentado a este homem decidido a não permitir que o mesmo ocorra. Não é a tradição, não é o certo. O diretor da Escola das Artes Ocultas e Padre da Igreja da Noite se dedica arduamente a tirar qualquer chance de Sabrina conseguir ganhar esse espaço para as mulheres. Em sua primeira parte sentimos mais um preconceito para com Sabrina por ela ser metade mortal, mas esses episódios são muito focados no papel de Sabrina como mulher e o reconhecimento de que as mulheres são esquecidas e prejudicadas pelo sistema – seja qual for ele.
Mais uma vez temos aqui os personagens negros com o desenvolvimento mais voltado a sofrer e superar, na forma de Prudence e Ambrose (Chance Perdomo). Prudence, uma das personagens com maior destaque em qualquer cena onde estivesse presente, é escrita como uma garota lutando pela aprovação de seu pai, se submetendo a situações bem degradantes e importunas. Enquanto Ambrose, o personagem que não apenas perde um ente amado mas também é acusado injustamente por um crime do qual não tinha culpa e é torturado e quase executado por isso. Ambos são alvos das manipulações do mesmo personagem cujo fito é manter o sistema como é e talvez o tornar mais opressor ainda aos que vão contra seus pensamentos e ideais. No final estes personagens estiveram a beira de perder tudo, passando por traumas incontáveis mas terminam ao menos encontrando uma relação de amizade dentro disso tudo.
Aqui faço uma pequena observação de como a relação entre os bruxos e toda a fala da não monogamia me distrai, pois sempre temos um viés voltado para o lado sexual pelo fato de bruxos não amarem a ninguém fora Satã. Acho que a forma como a ideia é vendida poderia ser mais interessante se tomassem uma aproximação mais adequada a tudo isso, com maior cuidado. Temos uma ótima representação de pansexualidade no personagem de Chance Perdomo, com Ambrose sendo afeminado e mesmo assim sendo mostrado tendo atrações por outros gêneros.
Mais uma vez as tias de Sabrina possuíram uma enorme chance de brilhar em quesito de enredo e de atuações, agradecimentos a Lucy Davis e a Miranda Otto por suas performances. O papel de Zelda nessa temporada foi muito bem elaborado e desenvolvido, a colocando na liderança da nova irmandade nascida após o desenrolar dos enredos da temporada. Temos aqui uma personagem com um avanço enorme, em determinado momento respondendo uma pergunta levantada na primeira parte da temporada sobre como se posicionaria se o Senhor das Trevas desejasse por assim algo que colocaria Sabrina em perigo. Nisso voltamos ao episódio especial de Natal, colocando Zelda como uma importante figura materna da vida de Sabrina.
Para os que estão em dúvida se devem ou não assistir essa série, gostaria de garantir uma aventura muito interessante de se acompanhar. Enquanto acompanhando o entretenimento ainda é possível ver o quanto dessa ficção pode ser aplicado ao nosso mundo real – especialmente no quesito de misoginia. Os episódios recentemente liberados dão um ótimo ponto final à história iniciada no final de 2018, também fazem o aguardo pela continuação aumentar, para sabermos o que vêm por aí.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.