O Mundo Sombrio de Sabrina – Amaldiçoada adaptação? Talvez

O Mundo Sombrio de Sabrina (Chilling Adventures of Sabrina, 2018 -) não se trata apenas de um reboot da série adolescente Sabrina, A Aprendiz de Feiticeira (Sabrina, the Teenage Witch, 1996 – 2003) mas sim de uma adaptação de um quadrinho de mesmo nome lançado em 2014. Os quadrinhos trazem uma versão mais sombria e madura para a história, com muito sangue, sacrifícios e rituais satânicos. A série não fica muito atrás disso, apresentando os Spellman como uma família de bruxos membros da Igreja da Noite e adoradores de Satã – assim como os demais bruxos mostrados.
Uma narrativa adolescente sobre uma jovem bruxa mestiça (pai bruxo e mãe humana) com a difícil escolha entre qual dos dois caminhos ela deve seguir, o da luz ou o das trevas. Não é a primeira história sobre uma grande escolha entre o caminho do coração e o caminho da sua linhagem sanguínea, mas a série consegue trazer muitos aspectos inovadores para contar esse tipo de história e também conta com a atriz Kiernan Shipka no papel da protagonista. A atriz trabalha bem com a personagem Sabrina, que eventualmente decide aprender feitiçaria e derrotar Satã para que todas as bruxas tenham liberdade e poder.
Os feitiços da série, de acordo com a atriz Tati Gabrielle – que dá vida à rival de Sabrina e parte das Irmãs Esquisitas – são feitiços reais da religião Wiccana. Apesar disso, a série pode vir a fazer um desserviço grande às bruxas por lhes pintarem como servas de Satã e pessoas que dependem dele para terem poderes. Não é à toa que a Netflix está sendo processada por um Templo Satânico pelo uso da imagem de uma estátua de Baphomet na Escola de Artes Não Vistas. No final é impossível negar que a série pinta uma imagem bem perversa e antiquada de bruxas .
Dentre os muitos pontos positivos desta série temos os personagens, especialmente os da família Spellman, que além de se encaixar naturalmente no enredo são capazes de trazer muito da comédia e do alívio cômico da série original. Miranda Otto dá vida a Zelda, uma devota séria da Igreja da Noite, que luta para que sua família possa ser uma família bruxa exemplar que segue os caminhos de Lúcifer. A personagem é uma representação adequada de como as pessoas dentro da Igreja (da Noite) sofrem lavagem cerebral e não questionam muito do que é dito e feito dentro dos templos.
Se Zelda é Cain, Hilda Spellman é seu Abel, interpretada por Lucy Davis. A seriedade e severidade de Zelda é bem rivalizada pela calma, carinho e mansidão de Hilda. As duas são opostos polares e temos em Hilda a representação de alguém que não se encontra verdadeiramente dentro da Igreja ou dos costumes da mesma. O eventual afastamento de Hilda da Igreja da Noite é enfrentado pela personagem primeiro como uma perda de um Norte, mas logo como uma libertação.
O primo de Sabrina, Ambrose Spellman – interpretado por Chance Perdomo – é a cereja do bolo da família. Ele e Sabrina possuem uma amizade muito grande, ele age como o seu irmão mais velho tentando o seu melhor para que a jovem bruxa não se meta em encrenca. No meio disto tudo, ele não pode sair de sua casa por crimes cometidos no passado que o fazem um alvo de um dos antagonistas da série visando usar o rapaz de peão. Outro fator importante na história do personagem é como sua sexualidade (Ambrose é pansexual) não é um fator que afeta o desenrolar de sua narrativa.
Outra das maiores falhas da narrativa é sobre como o seriado usa a personagem Prudence como uma das maiores atormentadoras de Sabrina, comumente a chamando de mestiça. O uso de xingamentos raciais por parte de uma personagem negra, para com a personagem branca é, no mínimo, ofensivo. Não diferente da questão constante da segunda temporada de Jessica Jones, também da Netflix, onde a personagem principal – branca – sofre preconceito por ter poderes por parte de personagens latinos, asiáticos e negros. Não é nada progressista mostrar uma mulher negra atormentando uma mulher branca por sua natureza.
Nos quadrinhos que originaram o título da série, a personagem da atriz Michelle Gomez, Mary Wardwell, é o espírito de uma bruxa chamada Iola que se sacrificou após Edward Spellman – pai de Sabrina – a largou para se casar com a mãe de Sabrina – Diana. Após muitos anos no inferno ela retornou devido a ritual performado por bruxas de Riverdale (as duas princesinhas de Riverdale, Betty Cooper e Veronica Lodge) e deu início ao seu plano de se vingar de toda a família. Na série as coisas são bem diferentes e a missão da personagem é conseguir fazer Sabrina assinar o nome no Livro da Besta e entregar sua alma à Satã.
Não só a personagem, mas toda a dualidade da relação dela com Sabrina são de muitas formas interessantes e inovadoras. Enquanto ela trama para que Sabrina se afaste de sua vida humana, seus amigos e seu namorado, Mary também é responsável por ensinar muito a Sabrina. Embora a personagem se mostre disposta a eliminar qualquer pessoa em seu caminho para realizar as vontades de Satã, não dá pra negar o laço importante que ela formara com Sabrina.
A presença dos familiares, que são duendes que assumem forma de animais para ‘trabalharem’ para seus bruxos, é de extrema importância. Mesmo sem falar literalmente, o gato de Sabrina – Salém – tem um papel muito grande em proteger a jovem bruxa de perigos iminentes. O mais interessante é que Sabrina e Salém não tem uma relação normal de bruxos e familiares, pois Sabrina não encomendou Salém como acontece normalmente com as bruxas da série. Os dois se escolheram, não são mestre e servente mas sim aliados. É interessante também como é mostrado que Sabrina é capaz de entender Salém por mais que ele não fale – como na série antiga.
Durante a primeira temporada são apresentadas muitas referências à clássicos do cinema, como na própria casa dos Spellman a vidraçaria de Suspiria (1977) – também visto uma referência na porta da sala do diretor da Academia das Artes Ocultas. O Exorcista (The Exorcist, 1973) é apropriadamente referenciado visualmente e também dentro do enredo no sexto episódio da série. As letras em meio a tela, atualizando sobre as datas, durante os dois primeiros episódios da temporada são similares ao filme Halloween (1978) de John Carpenter. O próprio advogado de Sabrina – Daniel Webster – do terceiro episódio da temporada é o protagonista do conto The Devil and Daniel Webster (O Homem que Vendeu Sua Alma), de Stephen Vincent Benét, publicado na década de 30.
A série estreou na última semana de Outubro e conta com dez episódios, contando já com uma segunda temporada sendo produzida. Mesmo com algumas falhas, que podem muito bem ser remendadas, a série não deixa de ser uma forte crítica ao machismo institucional nas religiões e uma narrativa interessante de ser assistida. Seria possível na segunda temporada Sabrina voltar a planejar formas de derrotar Satã – um enredo que se perdeu de maneira enfadonha devido ao seu romance humano?