A série Pose foi ao ar este ano no canal FX e conta a vida da comunidade LGBT na década de oitenta, lidando com a crise da AIDs e com o preconceito. O foco e o recorte da série são muito mais originais do que isso, já abordado previamente inúmeras vezes no cinema pelos olhos de homossexuais brancos. A série aborda tais temas pelo ponto de vistas da comunidade trans e negra, com personagens trans sendo interpretados por verdadeiras atrizes trans. A série é estrelada por MJ Rodriguez, que faz o papel de Blanca, que está tentando deixar seu legado nas noites da cidade de Nova Iorque montando sua própria `Casa’ para disputar nos Salões de Baile após ela ter descoberto ser soropositiva.
Toda a cultura dos salões de baile vem da cultura real, onde durante as noites essas pessoas se reuniam para dançar, competir, se vestir e ser quem elas realmente são. Pose tem seus enredos e personagens ficcionais mas a cultura vem da uma antiga Nova Iorque, de bailes realizados para a irmandade LGBT viver e simplesmente ser. Essa cultura já foi de certa forma abordada no documentário de Jennie Livingston, Paris is Burning (1990), mostrando entrevistas dos participantes de bailes e imagens dos bailes realizados naquela época. Toda a cultura das casas, lugares onde você escolhe sua própria família depois que – muitas vezes – a sua família biológica lhe expulsa. Infelizmente jovens LGBT serem expulsos de suas casas ainda é algo bem comum atualmente, mas no passado a regularidade era ainda maior.
Grande parte da mídia LGBT, além de ser focada em personagens brancos e cis, aborda muito um conteúdo sexual e é um diferencial muito grande nessa série, onde os personagens se referem ao ato sexual mas nenhuma cena mergulha no carnal. O íntimo sempre termina sendo o foco, mostrando as relações entre os personagens e como eles sentem e são. Como as personagens da série se relacionam sexualmente não termina sendo o foco, é apenas algo citado sem maior profundidade porque as pessoas da série são pessoas com vidas e problemas muito além de suas vidas sexuais.
São cinco atrizes trans como regulares na série. Elas interpretam personagens cujos enredos são sobre saber romper barreiras criadas pela sociedade, se tornarem independentes, deixarem sua marca no mundo e sobreviver. Domique Jackson dá vida à Elektra Abundance, a mãe da Casa Abundance e muitas vezes antagonista da história. A personagem criada por Dominique parece rasa em um primeiro momento, até que é perceptível que a Elektra primeiramente vista é uma personagem criada pela própria Elektra para não se revelar como a mulher vulnerável que é. A vida ensinou a essa personagem como deveria se defender e ela usa disso, muitas vezes a fazendo pisar nas outras personagens. Com o passar da temporada Elektra vai se mostrando mais um mãe e uma amiga de Blanca, do que uma rival como a própria Elektra acreditava ser.
Angel Evangelista, a personagem de Indya Moore, lida todo um enredo amoroso com o personagem de Evan Peters, Stan Bowes. À medida que a série avança Angel vai aceitando o valor que ela tem e cada vez menos aceitando as migalhas dadas a ela por Stan, que é casado e com filhos. Todo o conceito de ser uma mulher, mesmo ainda não tendo feito qualquer cirurgia, é bem abordado na relação de Angel com o núcleo cis e branco da história. A personagem é a que mais tem interações com pessoas cis e héteros na série. Um dos pontos altos da série é abordar sobre como o personagem de Peters, mesmo se relacionando com Angel, não é gay. Afinal, Angel é uma mulher e nenhum órgão do seu corpo vai definir isso como uma mentira.
Entre muitos outros assuntos, toda a passabilidade, a aceitação dos próprios corpos, da soropositividade, são bem abordados nessa série. A relação de Blanca com sua família é um dos pontos mais tocantes, em particular para mim, e do que significa amar mas não aceitar. Houve muito cuidado na realização desta série, em como as personagens seriam escritas e interpretadas. Toda a noite de baile serve também para quebrar muito as tensões apresentadas durante o resto do episódio, ou então acentuá-las. Um elenco majoritariamente negro e com atrizes trans interpretando pessoas trans é um passo na direção certa, considerando o quanto esses grupos já foram ignorados ou apagados no passado.
Mas não acaba aí, Pose não trouxe apenas uma representatividade para as telas. Não é uma série sobre ser negra e trans apenas feita por homens brancos e cis, a série contou com mais de 100 atores e membros da equipe trans. Não só isso, Janet Mock se tornou a primeira mulher trans negra a dirigir um episódio de uma série de televisão. Essa série se tornou um marco, em mais formas do que uma. Não é uma série LGBT sobre romance ou corações partidos, é sobre ser, sobre viver e sobre sobreviver, acima de tudo, juntos – como uma família. A série mostra que existem pessoas trans talentosas e capazes tanto quanto – ou mais – do que pessoas cis para estrelarem e trabalharem por trás das câmeras e que já chega, cada vez mais, de um cinema e televisão cis, branco e hétero.
Pose foi renovado para uma segunda temporada, então dá tempo de assistir a primeira, ou então reassistir porque é uma série muito gostosa de se ver.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.