As Minúcias de Objetos Cortantes

Séries longas e procedurais eram, praticamente, o padrão de produção de conteúdo para a TV até alguns anos atrás. Gigantes como Supernatural (2005 -) e Grey’s Anatomy (2005 -) estão indo para suas 14ª e 15ª temporadas, respectivamente. Porém, com o surgimento dos serviços de streaming e o aumento dos orçamentos dos programas, muitos canais estão preferindo diminuir a quantidade de episódios e investir mais na produção e pós produção dos seus seriados. Essa mudança foi perceptível. Os programas antes tinham 24 episódios e com o tempo passaram a ter 20, depois 16, depois 13 e, atualmente, o ideal parece ser 10 episódios, até mesmo 8. Óbvio que existem exceções, como o padrão de 13 episódios da Netflix e as séries de canais de TV aberta.
Nesse mundo onde a produção de conteúdo ganhou um caráter industrial, com milhares de séries e filmes sendo lançados por ano, minisséries e antologias estão ganhando cada vez mais espaço nas minhas prioridades. Assistir um programa com uma narrativa fechada em alguns episódios ou com uma história diferente por temporada, está me parecendo bem mais interessante do que acompanhar uma série longa que provavelmente já se perdeu com tantos capítulos. Por isso Objetos Cortantes (Sharp Objects, 2018) despertou meu interesse instantaneamente.
A minissérie criada por Marti Noxon é baseada no livro homônimo de Gillian Flynn (Garota Exemplar e Lugares Escuros) e conta a história de Camille Preaker (Amy Adams), uma jornalista que volta para sua cidade natal, Wind Gap, para investigar um assassinato de uma garotinha e o desaparecimento de outra. Hospedada na casa da família, Camille é obrigada confrontar seu passado, convivendo com sua mãe, Adora Crellin (Patricia Clarkson), e sua meia irmã Amma Crellin (Eliza Scanlen).
O ritmo da série é bem lento, muitos minutos são gastos mostrando o dia a dia e a convivência dos habitantes de Wind Gap, entretanto, a trama não se torna maçante e monótona. A cidade estar viva e ser um personagem na história me lembrou muito as obras de Stephen King, ainda mais por essa cidadezinha do interior do Missouri possuir uma certa estranheza atrelada a uma atmosfera melancólica e hostil.
Um dos pontos altos dessa minissérie da HBO é o roteiro. Pela autora estar envolvida no projeto, a série conseguiu transmitir muito bem, através de entrelinhas nos diálogos, a relação dos personagens descrita no livro. Os roteiristas também sentiram-se mais seguros para acrescentar conflitos a trama, criando um episódio inteiro com situações originais para a adaptação, assim, ajudando a aprofundar o passado e a interação dos moradores da cidade.
Um bom roteiro precisa de bons atores e Objetos Cortantes escalou muito bem o seu elenco. Todos os personagens aparentam ser reais e alguns são fascinantes, em especial Camille, Amma e Adora.
No decorrer dos episódios, nós conseguimos entrar fundo na mente de Camille, conhecemos seus demônios, suas qualidades, seus medos e quanto mais exploramos a sua infância naquela família disfuncional, entendemos porque e como ela se tornou quem é hoje, uma pessoa atormentada pela morte da irmã mais nova, mal resolvida com o seu passado, anti-social e que usa o álcool para anestesiar-se desta realidade angustiante que é a sua vida, além de se cortar para que a dor da carne alivie a da mente.
Também nos aprofundamos no psicológico de Adora, uma mulher rica, aparentemente frágil, que vive de aparências e toma para si a responsabilidade de tudo o que acontece na cidade, além de ser a mãe superprotetora de Amma, uma adolescente rebelde podada por uma bolha claustrofóbica de regras e afeição.
A interação do trio é o que mantém o espectador preso na cadeira durante os capítulos. Apesar de ter um assassinato de fundo e a investigação do detetive Richard Willis (Chris Messina) me lembrar um pouco a vibe de True Detective (2014 -), ela não é o foco central da história, sendo apenas o fio condutor entre as narrativas, como em Big Little Lies (2017 -).
Outro acerto do programa é a direção de Jean-Marc Vallée. O diretor insere flashs do passado de Camille durante todos os episódios, mas grande parte são apenas segundos que podem ser facilmente perdidos por uma olhada no celular. Os relances almejam retratar as conexões mentais confusas e desconexas de Camille por estar retornando a força para aquela cidade. Esses vislumbres compõem e enriquecem a narrativa de tal maneira que o público não consegue compreender a protagonista por completo sem eles. Além disso, as palavras escritas por Camille em seu corpo raramente são mostradas de uma maneira expositiva e prolongada. Então o espectador é obrigado a manter-se constantemente instigado, estudando e analisando tudo o que está acontecendo em tela até os últimos segundos da season finale. Evidentemente essa façanha só foi possível graças a montagem minuciosa do seriado e a trilha sonora escolhida a dedo para determinadas cenas.
Pessoalmente, acho que os três temas que fazem parte da discussão central da minissérie são a indiferença e a falta de seriedade das pessoas quando se trata do diagnóstico de doenças mentais; a conformidade da sociedade para com a violência, seja ela física ou psicológica; e as pessoas âncoras que te deixam doente e mal consigo mesmo, impedindo que você evolua e siga em frente depois de determinado trauma.
Por fim, o encerramento da série é satisfatório. Apesar de não ser mostrado a reação dos moradores de Wind Gap com a descoberta do culpado pelas mortes e desaparecimentos, as perguntas são respondidas e o final fica em aberto para discussão do espectador, o que me agrada demais. Entretanto, o capitulo 8 é deveras destoante do restante dos episódios, devido a seu claro desespero para concluir os arcos dramáticos, resultando em conveniências de roteiro e no ritmo acelerado atribuído aos 10 minutos finais, parecendo que o diretor lembrou que não existiria um nono episódio e teria que cortar todas as pontas soltas nos minutos restantes.
Objetos Cortantes consegue discutir depressão, amor, relacionamentos tóxicos e submissão em uma trama repleta de sutileza e significados, utilizando uma montagem rápida para demonstrar o quão complexo pode ser o psicológico de alguém, recompensando o foco e a atenção do público, não tratando-o como idiota. O resultado aparentemente agradou os leitores e os telespectadores, e depois da última cena pós créditos, no meio de tantas interpretações, talvez, os objetos cortantes não sejam apenas os objetos que você pensa.