Atômica (Atomic Blonde, 2017) é um filme de ação, mais especificamente do subgênero espionagem, inspirado na graphic novel “The Coldest City”, de Antony Johnston e Sam Hart, protagonizado por Charlize Theron (Monster: Desejo Assassino e Mad Max: Estrada da Fúria) e dirigido por David Leitch, que começou sua carreira como dublê, co-dirigiu De Volta ao Jogo (John Wick) e que agora faz sua estreia como diretor em grande estilo.
No longa, Lorraine Broughton é uma agente do MI6 enviada sob disfarce à Berlin durante a Guerra Fria para retornar com o corpo de um colega assassinado e recuperar uma lista desaparecida cujo conteúdo comprometeria a segurança de inúmeros agentes.
O projeto foi idealizado pela própria Charlize, estando à frente de tudo antes mesmo do diretor entrar para a equipe e demorou cerca de cinco anos e meio, entre preparação e desenvolvimento para sair do papel. Tanto trabalho valeu bastante à pena. A atriz sul-africana é o centro de todas as atenções e merece todas as palmas possíveis, além de se entregar completamente ao papel, dedicando-se exaustivamente para atuar em quase todas as cenas de ação, ela também carrega o filme do começo ao fim em termos de encenação, mesmo que o carisma e o incontestável talento de James McAvoy (principalmente depois do elogiado “Fragmentado”) tenham chegado perto de roubar a cena todas as vezes em que apareceu.
O visual do filme também ajuda bastante para o resultado positivo, ambientado nos anos 80, a arte e a fotografia abusam do cenários de neon com cores tonificadas geralmente em azul turquesa e rosa bebê (muito utilizado hoje em videoclipes que utilizam a estética synthwave) em contraste com cores mais lavadas, caindo para o azul, e uma iluminação que foca em algumas áreas enquanto outras estão escuras dando um tom meio noir (o que lembra bastante o material original da HQ), a trilha sonora sempre orgânica à trama e inserida no contexto é um destaque à parte e que incluem algumas das minhas músicas favoritas, foi difícil não ser fisgada.
Mas é a direção, principalmente das lutas, que merece o verdadeiro parabéns. Sam Hargrave, diretor de segunda unidade e coordenador de dublês dirigiu e operou a câmera de uma sequência longa de tirar o folêgo em que a coreografia de luta, a performance de Charlize Theron, o profissionalismo dos dublês, a montagem impecável e a direção de David Leitch trabalhassem com maestria para valorizar os movimentos e a verissimilhança, entregando um resultado realmente formidável.
Porém, nem só de pontos positivos vive a espiã badass. O recurso narrativo de voltar à sala de interrogatórios utilizando flashbacks para contar a trama, pode se tornar cansativo para alguns e até mesmo chega a prejudicar um pouco o ritmo, o roteiro não se esforça em ser didático e o contexto usado como pano de fundo traz uma bagagem densa à história e isso pode parecer complicado e confundir em certos pontos. Pessoalmente, não é algo que chega a me incomodar, mas para muitos pode vir a se tornar um obstáculo.
Não, o que me incomodou mesmo em “Atômica” foram alguns pontos da construção de sua protagonista. Não sabemos muito sobre Lorraine, mas eu não vi isso como um problema, entendo que ela é realmente um retrato de sua época: misteriosa, dura e fria, completamente submersa no clima em que está inserida (o próprio filme brinca com isso, com os banhos com cubos de gelo que ela toma, a vodca com gelo, a arma que ela tira de dentro de um balde de gelo, etc). Ela é letal, aguenta muita pancada e dá conta do recado perfeitamente. O problema é que em muitos momentos senti que ora ela parecia ter sido escrita só para homens se identificarem e em outros que ela servia como uma fantasia sexual ambulante, com roupas sexualizadas, enquadramentos sexualizadores, corpos femininos nus mais expostos que os masculinos, até mesmo o relacionamento da espiã com uma agente francesa, tido como positivo por configurar a bissexualidade da personagem, para mim serviu só de fachada para a realização máxima do fetiche masculino. Mesmo que tenha um sentido por trás, a forma como é feita as objetifica e o desenrolar do mesmo acaba caindo em clichês sexistas. Vale a observação de que a personagem francesa na HQ é um homem. É de se refletir o que mudaria se assim continuasse no filme.
De toda forma, “Atômica”, assim como foi “Ritmo de Fuga” antes dele, é um filme impressionante, de personalidade marcante que se destaca dentre a grande maioria de filmes de ação genéricos e imbecilizados que chegam ao cinema todo mês. Como filme de ação, vale o ingresso. Como filme de ação com protagonista feminina bem escrita, ainda não foi dessa vez.
Roteirista e podcaster bacharel em Cinema e Audiovisual. Ex-potterhead. Escuta música triste pra ficar feliz e se empolga quando fala de The Last of Us ou Adventure Time. É viciado em convencer as pessoas a assistirem One Piece, apreciador dos bons clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa e, acima de tudo, um Goonie genuíno.