– Contém spoilers sobre as franquias Star Wars e Harry Potter –
Costumo dizer que os vilões são os personagens mais interessantes de um filme. É porque eles são os mais bem desenvolvidos, ou seja, com elementos de seu passado e histórias claras e que, muitas vezes (quase todas), explicam o porque de eles serem vilões ou o que os levaram a agir dessa forma. Vamos com calma, eu explico isso melhor…
No dia 19 de Dezembro de 2020, a saga de uma das franquias mais amadas do cinema chegou ao fim: Star Wars: Episódio IX – A Ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX – The Rise of Skywalker) estreou nos cinemas do Brasil fechando a trilogia das trilogias de Star Wars. O que muita gente não esperava era a conclusão da história de Kylo Ren.
O personagem, interpretado pelo ator Adam Driver, é um Darth Vader diferente, evoluído. Apesar das polêmicas e das especulações de um romance com Rey (Daisy Ridley), Kylo Ren é um dos personagens mais comentados da nova trilogia. Amado e odiado por diversos fanáticos das histórias originais e por novos fãs da franquia, o novo personagem certamente não passa despercebido aos olhos de nenhum espectador. Independente de sua opinião sobre o personagem, você certamente terá alguma opinião sobre ele.
Claro, a atuação de Adam Driver dá todo o tom do personagem, que carrega uma história em cada olhar para seus afetos e desafetos, suas entonações de falas e choros… e, claro, ao descobrirmos seu passado, fica mais fácil entender a obsessão em vingar a morte do avô, o próprio Darth Vader.
Tá, mas o que Kylo Ren e Snape de Harry Potter tem em comum (além do nariz avantajado e cabelos “sebosos”, obviamente)?
Apesar da piadinha, esses personagens tem muito em comum: ambos carregam dores do seu passado, o que inclusive também os influencia a tomar decisões no presente e futuro – Kylo, ao matar seu pai, ou quando Snape maltrata Harry durante os anos que o garoto frequentava Hogwarts; ambos sofreram muito e acreditam que não tem outra opção a não ser fazer aquilo que fazem; ambos confiaram em pessoas que os traíram; ambos se aliam ou idolatram “vilões” declarados do protagonista ou até em certos momentos são, eles mesmos, esses vilões… mas por quê tais personagens causam tanto debate, e esses sentimentos de ódio ou amor profundo?
Óbvio que o carisma e excelente atuação de seus intérpretes contam, e muito, pra essa dualidade. Adam Driver (Kylo Ren) e Alan Rickman (Severus Snape) atuam de forma brilhante nas cenas, trazendo muito mais do que seus arcos e falas poderiam (especialmente no caso de Adam Driver no Episódio IX): eles trazem sutilezas, alegrias, amor e afeto mesmo quando seus personagens estão agindo como “vilões”. Mas, claro, tudo isso porque a construção do personagem parte de sentimentos mistos. Lembra de Divertida Mente (Inside Out, 2015) quando a Riley, a protagonista, sente alegria e tristeza no mesmo momento e a primeira emoção mista é criada? Pois é. Kylo Ren e Snape são, acima de tudo, HUMANOS, com falhas, mas também com muito amor.
Não por acaso, a cena de maior destaque desses dois seja exatamente a cena de suas mortes. Ali, naquele momento, todos os erros e acertos de suas vidas passam em suas cabeças e ambos fazem não só o que se esperaria de qualquer dos heróis principais, mas ali eles mostram que possuem muito amor dentro de si. E se sacrificam para salvar o protagonista.
Claro que as atuações de Alan e Adam (que eu acabei de perceber, também possuem nomes parecidos, olha só) carregam toda a emoção e a força necessária, chegando até a apagar os protagonistas das tramas quando estão em cena, mas também se beneficiam de personagens consistentes e intensos.
É por isso que Kylo e Snape causam emoções tão fervorosas, discussões acaloradas, dualidades de sentimentos, ódio e amor nos fãs das duas franquias: eles não são personagens simples, não são fáceis de entender ou digerir e, com certeza, não podem ser classificados simplesmente entre “mocinho” ou “vilão”: eles ultrapassam essas interpretações. Eles são muito mais do que categorias, possuem características de várias delas (vilões, mocinhos, mentores, ajudantes do protagonista, etc.), possuem várias emoções mistas (quando Kylo Ren ouve a voz de sua mãe antes de “matar” Rey ou quando descobrimos o passado de Snape e o vemos chorar segurando a mãe de Harry), possuem histórias complexas e intrigantes e definitivamente não são “preto no branco” (ou seja, não são personagens que possuem uma definição precisa se suas atitudes são boas ou ruins)… eles cometem erros e depois pedem desculpas, eles se questionam sobre tudo… eles são os mais próximos de nós, espectadores.
E o que isso significa? Por que eles são tão amados? Ou odiados? Nós, humanos, somos extremamente dualistas. Pra nós é difícil enxergar mais do que duas possibilidades para as coisas. Esquerda ou direita, bem ou mal, feliz ou triste… como se ignorássemos que existem diversas nuances nesse meio. E mais, que existem muito mais coisas além dessas duas únicas possibilidades. E aí, quando uma obra cinematográfica ou literária nos apresenta personagens, a gente vai colocando nessas “caixinhas”: “Herói” ou “Vilão”, e, a partir daí, é muito difícil se desvencilhar dessa primeira impressão que criamos. Mesmo que nós próprios sejamos plurais e cheios de nuances.
Então, quando um personagem apresenta essas nuances e pluralidades em tela (ou página), nos vemos representados de forma “fiel”. E, consciente ou inconscientemente, não gostamos disso. “Como assim alguém criou um personagem que é exatamente como eu?”. Sim, nós gostamos de amar ou odiar. Como se não houvesse nada no meio e nem além. E a tendência é odiá-los porque eles são plurais e cheios de contradições e etc. Snape podia ser bem chatinho com Harry, mas apenas porque ele amava demais Lilian Potter. Kylo queria tanto converter Rey pro seu lado porque gostava sim, dela. E sim, ele tomou decisões equivocadas no caminho (inclusive a torturando), mas entendam que nossos sentimentos são confusos mesmo. São intensos, misturados, atrapalhados.
E que tal se a gente não colocar mais esses personagens em uma caixinha ou outra? E se aceitarmos que eles podem sim estar em mais de uma? Ronald Weasley (meu personagem preferido de Harry Potter) também foi bem cruel com Harry e com Hermione em vários momentos da saga, inclusive abandonando ambos sozinhos em um momento crucial da busca em derrotar o maior vilão do mundo bruxo. Precisamos aceitar que personagens cometem erros e precisamos aceitar que pessoas cometem erros. E tudo bem. Porque uma só atitude não nos define. É por isso que as cenas de morte de Kylo Ren e de Snape são tão marcantes para os protagonistas de suas sagas: ali, percebem que apesar das atitudes equivocadas que eles tomaram, tentavam fazer um bem maior. E no fim, fizeram e mudaram pra sempre a vida dos protagonistas.
Conclusão? Não tem uma, exatamente. Somos seres incompletos, inacabados e em constante mudança. É por isso que, quando vemos esses personagens, nos identificamos com eles e podemos amá-los por isso, ou simplesmente odiar por ter que lidar com nossas inseguranças. Quem sabe daqui uns anos, você não muda de opinião sobre Kylo Ren ou Snape? Eu, por agora, os amo muito.
Cineasta finalmente formada, nascida e criada em São Paulo, infelizmente. Quando empregada, atua como fotógrafa. Prefere maratonar séries do que dormir, cai muito fácil em provocações, mas tem o riso frouxo e gosta de abraços.