Quero começar esse texto esclarecendo algo: eu nunca fui muito fã do Hideo Kojima.
Ouvi falar dele pela primeira vez em 2008, quando a locadora que eu frequentava foi tomada por alguns gamers mais velhos que tinham muitas coisas a dizer sobre Metal Gear Solid 3: Snake Eater (2004). Kojima – eles diziam – era um gênio, e todo gamer que se preze deveria jogar Metal Gear pelo menos uma vez na vida, e como não era a primeira vez que eu ouvia pessoas falando bem de Metal Gear, resolvi abandonar Guitar Hero por um dia e dar uma chance ao jogo.
Eu não fiquei muito impressionada.
Hoje em dia posso dizer que Metal Gear simplesmente não é pra mim. Mesmo assim, admito sem nenhuma ressalva que Hideo Kojima é, de fato, bem genial. A ele se deve o conceito de stealth game como nós conhecemos hoje, e também uma generosa parcela da revolução no formato de storytelling de videogames. Universos criados por Kojima são icônicos, seus personagens são cativantes, envolventes e marcantes, suas histórias possuem contexto, camadas e um nível de complexidade admirável. Entretanto, apesar de reconhecer a genialidade e a influência de Kojima no mundo dos games, eu não tinha nenhum interesse em particular em seus trabalhos.
Decidi começar com esse pequeno relato pessoal para deixar bem claro que a hype em volta de Death Stranding (2019), pra mim, não estava relacionada ao “mais novo trabalho de Kojima”. De acordo com a minha experiência pessoal, o jogo tinha tudo pra ser revolucionário, porém completamente desinteressante. Entretanto, desde seu primeiro anúncio oficial, na E3 de 2016, com direito a uma orquestra e um dos vídeos mais bizarros que eu já vi na vida, esse jogo despertou em mim – e em muitos outros gamers por aí – a mais absoluta curiosidade, que foi alimentada durante três anos por cada atualização, cada novo trailer ou informação a respeito do jogo e do lançamento.
Quando Death Stranding finalmente chegou em minhas mãos, eu não fiquei desapontada.
O pontapé inicial de Death Stranding é, no mais puro estilo Kojima, uma mistura de longas cutscenes explicativas – que não necessariamente explicam muita coisa – e uma introdução às mecânicas mais básicas do jogo, abrangendo desde um primeiro contato do jogador com o “inimigo” até a introdução de personagens, conceitos e objetivos que serão constantes até o final da história. Pra quem jogou Metal Gear, todos os elementos estão presentes: personagens com codinomes estranhamente descritivos, um patriotismo exagerado e/ou mal orientado, relações conturbadas com personagens femininas e até mesmo a morte – e suas consequências – como único jeito de levar a história adiante.
Entretanto, apesar das semelhanças, Death Stranding tem um sabor muito mais familiar e imersivo. Se colocar no lugar de Sam (Norman Reedus), o personagem principal, é relativamente fácil: ele não é excepcionalmente habilidoso e não está mais – ou menos – preparado do que qualquer outra pessoa para o mundo em que vive. Suas peculiaridades são poucas e não necessariamente extraordinárias: ele tem DOOMS, uma “condição” especial que permite que ele sinta a presença dos misteriosos BTs – os inimigos sobrenaturais do jogo -, e quando morre, tem a opção de Repatriar, que é apenas uma versão alternativa da boa e velha tela de Continue. E é isso.
Sam é considerado um especialista em entregas simplesmente por estar disposto a percorrer as longas distâncias entre uma cidade e outra, atravessando territórios habitados por inimigos e se submetendo a longos e, algumas vezes, inevitáveis períodos de Timefall, e nada mais. Todas as habilidades ou itens extras que se tornam disponíveis no decorrer do jogo são novidades, e por causa disso, jogador e personagem aprendem juntos ao longo da experiência, possibilitando um nível de imersão raro de se encontrar em jogos de ação ou aventura.
Essa imersão é aprofundada pelas paisagens vastas e exuberantes, que, combinadas com a inserção extremamente bem planejada de uma trilha sonora verdadeiramente magnífica, sons ambientes e uma dinâmica de aproximação e distanciamento de câmera de acordo com o momento vivenciado no jogo, amplificam o sentimento de absoluta solidão e arduidade da jornada, e é essa imersão que torna extremamente fácil investir horas e horas em Death Stranding sem sequer perceber.
As missões do jogo estão, em sua maioria massiva, relacionadas a transportar e entregar pacotes. Parece uma tarefa simples e provavelmente desinteressante, mas na América distópica pós-apocalíptica de Kojima, estradas são privilégios raros e formas rápidas de percorrer distâncias não aparecem até pontos mais avançados da história, e isso implica que boa parte dessa jornada tem que ser enfrentada a pé, através de caminhos tortuosos e cheios de obstáculos naturais, carregando pilhas enormes de pacotes nas costas, o que leva a uma das características mais controversas de Death Stranding: a necessidade constante de planejamento.
Em Death Stranding, a movimentação é parte do desafio do jogo. Subir ladeiras ou atravessar riachos são tarefas que são diretamente afetada pela quantidade de peso sendo carregada, a forma como esse peso é distribuído no inventário, a energia disponível para realizar essa tarefa e a habilidade pessoal do jogador de observar e balancear todos esses fatores simultaneamente. Por isso, planejamento é algo essencial: muitas vezes, parar e pensar com calma sobre o caminho a percorrer e o que precisa ser carregado é um jeito simples e relativamente fácil de evitar um backtracking desnecessário.
Para muitas pessoas, essa tarefa parece irritante e desencorajadora, mas planejar o caminho que vai ser percorrido é uma ótima estratégia para melhorar o ritmo do jogo e até evitar contato com inimigos, especialmente no começo, quando os recursos são limitados e o personagem não tem muitos jeitos de se defender. Esse planejamento é ainda facilitado pelo acesso a uma visão topográfica do mapa, e também pelas placas de aviso deixadas por outros jogadores, indicando onde começam territórios inimigos ou onde o caminho é mais escorregadio ou difícil de atravessar.
Essa é provavelmente uma das inovações mais maravilhosas que Death Stranding traz pro mundo dos games. Quando pensamos em jogos cooperativos online, o que vem à mente são MMORPG e alguns jogos de tiro em primeira pessoa em que é possível formar times para alcançar um objetivo, e, apesar de ter seus charmes, esse formato de interação não necessariamente incentiva uma boa relação entre jogadores. Em 2012, Journey, um jogo indie de aventura com um visual simples, abstrato e absolutamente maravilhoso, introduziu um conceito de cooperação online novo e único que consistia em partilhar parte da jornada com jogadores percorrendo o mesmo caminho, mesmo sem poder se comunicar com eles, e colaborar entre si para superar obstáculos. Nesse contexto, ajudar o outro significa ajudar a si mesmo, e trabalhar junto com outra pessoa torna a jornada mais fácil e menos exaustiva.
Death Stranding expande o conceito de cooperação de Journey de um jeito que se encaixa perfeitamente no contexto social e cultural vivenciado atualmente: mesmo sem nunca interagir diretamente com outros jogadores, é possível deixar mensagens de alerta ou encorajamento, construir estruturas para ajudar quem precisar percorrer o mesmo caminho, passar adiante itens que não serão mais utilizados, ajudar outras pessoas a fazer entregas ou finalizar construções e até atender a pedidos de ajuda de alguém que precisa de um item ou material específico, tendo cada uma dessas ações pontuada por um sistema de likes que lembra muito o algoritmo de funcionamento das redes sociais, em que quanto mais likes você recebe, mais relevante a sua contribuição se torna.
Obviamente, Death Stranding não é um jogo sem defeitos. Considerando todos os elementos já mencionados, é fácil perceber que o ritmo do jogo é inevitavelmente mais lento do que muitas pessoas tem paciência para tolerar. Mesmo escolhendo fazer exclusivamente as missões da história, a distância entre os objetivos e as dificuldades encontradas no caminho podem deixar até mesmo os gamers mais perseverantes um pouco desencorajados.
Somado a isso existe o fator motivação: o “objetivo” do jogo é “make America whole again”, ou restaurar a América, em uma tradução livre. Soa familiar? Não dá pra dizer se a semelhança do discurso é intencional ou não, mas é possível observar com muita clareza que o discurso sobre reconstruir o país não é suficiente para convencer Sam, e consequentemente falha em motivar o jogador. Na prática, o objetivo real é ajudar e conectar pessoas que estão lidando sozinhas com as adversidades de um mundo em ruínas e lidar com um inimigo que quer causar a extinção total da raça humana, mas chegar a essa conclusão por conta própria leva algum tempo, e toda vez que o discurso de reconstruir o país volta, ele quebra um pouco o senso de propósito do jogo.
Outro fator que torna o jogo cansativo e causa um pouco de frustração são as explicações que não esclarecem nada e as cutscenes que parecem nunca terminar. Sem dúvida alguma, criar um universo inteiro do zero significa ter que justificar, pelo menos até um certo nível de razoabilidade, como as coisas chegaram ao ponto em que estão e porque isso aconteceu, mas Kojima perde um pouco o controle desse impulso explicativo, apresentando ao mesmo tempo muitas informações e nenhuma informação verdadeiramente relevante e fazendo com que o jogador eventualmente perca um pouco de interesse, especialmente quando esse processo acontece através de cutscenes que chegam a ter até 20 minutos de cada vez.
Longas cutscenes também estão entre os fatores que inevitavelmente quebram a imersão que o jogo constrói com tanta maestria. Claro, existem outros elementos de quebra de imersão, como personagens com rostos familiares fazendo aparições ao longo do jogo, a presença constante de latinhas de Monster no quarto de Sam, uma chamada de Ride with Norman Reedus que aparece toda vez que o banheiro é usado, e o ocasional holograma de Aloy ou de um Tallneck, que podem ser usados ao personalizar uma estrutura, mas as cutscenes são um problema um pouco maior justamente por serem parte crucial da história, ao contrário desses easter eggs que eventualmente se tornam parte da experiência.
Por último, o combate em Death Stranding, como já é de se esperar dos trabalhos de Kojima, pode ser ao mesmo tempo fascinante e incrivelmente frustrante. Como o jogo não é necessariamente focado em combate, Sam precisa passar por muitos dos perigos que encontra armado apenas com seus punhos e uma corda, uma tarefa que é lenta porém realizável se estivermos falando de inimigos humanos, mas um pequeno pesadelo quando os adversários são BTs. Mesmo depois de conseguir acesso a uma pequena variedade de armas, existe uma série de coisas que precisam ser levadas em consideração antes de usá-las: uma arma letal vai matar um inimigo humano e forçar você a se livrar do corpo para evitar um Voidout, explosões catastróficas que acontecem quando BTs entram em contato com humanos – uma jornada quase sempre longa e trabalhosa -; armas não letais consomem muita munição; armas que funcionam contra BTs consomem sangue do personagem, que precisa ser reposto, ou o processo de carregar os pacotes se torna mais difícil.
Existem, é claro, jeitos de lidar com essas limitações. É possível liberar versões melhoradas das armas, mas essa é uma tarefa que não necessariamente é esclarecida pelo jogo e que inevitavelmente consome tempo. Entretanto, batalhas contra BTs que detectam a presença de Sam, apesar de serem completamente evitáveis e causarem um certo nível de inconveniência – boa sorte localizando todos os seus itens de novo depois -, estão entre as experiências mais impressionantes do jogo.
Pra quem jogou Metal Gear Solid V: The Phantom Pain (2015), entrar em combate com BTs é comparável a entrar em combate com os Skulls. Tudo, desde a pequena cutscene que anuncia o início da batalha à alteração do ambiente e estranheza e anormalidade do inimigo em si é muito familiar, embora muito mais empolgante – uma vez que se esteja adequadamente preparado, é claro.
Ao fim de uma jornada de no mínimo 50 horas, depois de interagir com alguns dos personagens mais interessantes e assistir algumas das cutscenes mais frustrantes do mundo dos games, é fácil entender porque Death Stranding tem sido um divisor de águas. Como todos os trabalhos de Kojima, esse também não é um jogo para todos os gostos, e embarcar nessa jornada despreparado e desinformado é provavelmente o motivo pelo qual o jogo recebeu tantas críticas negativas, mas julgar Death Stranding exclusivamente pelas partes que deixam a desejar é uma grande injustiça.
A qualidade artística da produção é inegável, e muito provavelmente esse será o estopim para mais uma revolução na indústria de games, e mesmo que isso não seja suficiente pra conquistar as graças do público, a mensagem profunda de empatia e solidariedade do jogo deveria, especialmente em tempos de crise mundial como a que estamos vivendo agora. Eu não consigo colocar em palavras o tamanho do alívio que eu senti todas as vezes que eu me vi em um mato sem cachorro nesse jogo e encontrei uma estrutura colocada por outro jogador ou um item deixado num Postbox estrategicamente posicionado que me ajudou a sair da situação em que eu estava, e esse provavelmente é o grande legado de Death Stranding: se nós estamos sozinhos juntos, não custa nada fazer o que estiver ao nosso alcance pra melhorar a vida do próximo.
Unicórnia, escritora, wannabe de roteirista e fangirl profissional, se alimenta de livros, filmes, games, animes, seriados, fanfics e cupcakes. É ocasionalmente vista chorando enquanto assiste animes de esporte, assombrando livrarias e eventos geek pela cidade, contando histórias de terror em salas escuras ou falando com gatos na rua. Os gatos normalmente respondem.