Contos dos Orixás – Heróis brasileiros mostram a sua força

 

Vivemos em tempos incertos e de uma polarização intensa aqui no Brasil, a onda conservadora que assola nossa nação mostra um povo brasileiro inseguro que revela sua verdadeira índole (muitas vezes preconceituosa) frente a problemas sociais e raciais. Espere, antes que você desista deste texto, esta crítica não é sobre política, a frase citada no começo era para situar sobre o momento em que o Brasil se encontra, onde mais do que nunca, histórias sobre a cultura negra como Contos dos Orixás se fazem necessárias para que não nos esqueçamos de nossas origens ancestrais africanas e melhor, para que tenhamos mais conhecimento sobre um assunto tão estigmatizado por boa parte da população.

Foi no ano de 2018 que conheci o projeto Contos dos Orixás. Pessoalmente, conhecia pouco da cultura Yorubá, mas sempre tive vontade de saber mais sobre o assunto e vi uma oportunidade de saber mais sobre essa cultura que é base de religiões como Candomblé e Umbanda através desta obra em quadrinhos. Contos dos Orixás é um projeto que só ganhou vida graça a iniciativa e o afinco de seu criador, o baiano Hugo Canuto, que não só desenhou as artes da graphic novel, mas também assinou o roteiro da obra de 120 páginas criando todo um universo onde os Orixás lendários vivem no Aiyê (mundo físico, no caso a Terra) entre os mortais protegendo e garantido o equilíbrio e a paz entre os povos.

Para quem é leigo sobre o assunto e tem curiosidade, esta obra é ideal em abrir as portas para uma cultura que é parte não só da história africana, como da história da América Latina e principalmente da história brasileira, com muita ênfase na cultura baiana. Hugo Canuto foi feliz em escolher um formato familiar para trazer seu universo de heróis à vida, lendo as páginas da graphic novel, você percebe o quão rico e bem feito é o universo criado, um vislumbre e um visual que só os quadrinhos poderiam proporcionar. É perceptível o quanto Canuto se sente a vontade dentro daquele universo e o quão sua pesquisa é precisa para criar toda uma mitologia que se faz presente em cada arte e cada esboço apresentados. O quadrinista tem fortes inspirações nos quadrinhos da Marvel dos anos 60, um assíduo fã de Jack Kirby e dos Vingadores, e isto fica claro quando se lê Contos dos Orixás, uma clara homenagem aos melhores trabalhos do Kirby na Casa das Ideias.

Ainda que a obra tenha suas inspirações, a história tem sua própria voz e é direcionada bastante ao público brasileiro, principalmente a comunidade negra. O que não falta nos Contos dos Orixás é representatividade e a vontade do autor em mostrar o quão rico e memorável é a cultura africana que faz parte de nossas origens, grandes reis, grandes reinos, grandes guerreiros e grandes histórias, tudo inserido na medida certa, tudo mostrando o negro como centro da narrativa através dos olhos dos guerreiros orixás: Xangô, Ogum, Iansã, Oxum, dentre outros que aparecem no decorrer da história. É a pura exaltação da negritude, que aqui ganha contornos cartunescos e, de um lado, apresenta mais informações sobre a cultura Yorubá transformando os Orixás em guardiões da paz detentores de forças sobrenaturais que fazem destes poderosos semideuses, e do outro, mantém a aura de uma história em quadrinhos transformando entidades mitológicas em super-heróis com forte senso de justiça de forma a atrair uma geração que ainda desconhece a força da sua própria cultura numa linguagem mais acessível.

A trama em si foca na missão de Xangô (Orixá e rei dos trovões) e seus aliados para ajudar o Reino das Águas governado por Oxum (Orixá rainha dos rios e das cachoeiras) que vê seu povo ser perseguido e ameaçado por inimigos ferozes liderados pelo terrível Ajantala. A narrativa é bastante simples e objetiva, mas é coerente em situar quem lê e é eficaz em prender a atenção do leitor que tem fome de histórias com mitologia forte por trás. Confesso que a linguagem no início me causou certa estranheza, mas nada que prejudique a leitura, que flui bem na maior parte do tempo, porque quanto mais você conhece a história, mais curioso você fica em relação aos termos ditos e sobre a língua falada, além de ficar curioso em relação ao desfecho da trama.

Sobre a arte dos quadrinhos em si, para mim é o ponto mais forte de Contos dos Orixás, os traços desenhados por Hugo Canuto são belíssimos e muito bem caracterizados, desde os personagens (o conceito visual do físico dos personagens foram inspiradas em pessoas reais de Salvador), passando pelas grandiosas cidades (metrópoles visualmente fantásticas), vestimentas, chegando à fauna e a flora que remete lugares do continente africano, tudo com uma gama e uma paleta de cores numa qualidade técnica complexa que poderia rivalizar facilmente com quadrinhos consagrados da DC e da Marvel.

O graphic novel Contos dos Orixás vem para mudar o cenário nacional e quebrar preconceitos, com um material caprichado, uma linguagem mais acessível na forma de quadrinhos e uma história representativa muito forte para a cultura negra regada a muito Axé e tempero, que tem também a missão de não só mostrar um novo olhar diferente sobre a cultura Yorubá, de forma quebrar a resistência brasileira em relação à cultura africana e as religiões de matriz africana que fazem parte da nossa história e devem ser exaltadas, mas principalmente, devem ser respeitadas. Canuto cria uma obra nacional que não só irá atrair leitores fãs de quadrinhos, mas novos leitores em busca de conteúdo diversificado e de qualidade.

Vale a pena comprar o material, recebi um graphic novel autografado de 120 páginas, um artbook e um marcador de livro, tudo bem caprichado, formato americano, capa comum, resistente, traços fortes, bem desenhados e com cores vibrantes. Não só a história é satisfatória, mas também o conteúdo extra que trás curiosidades sobre o processo criativo do autor, além de curiosidades sobre pesquisa para concepção da história e glossário com significado das palavras mais complexas. Outro conteúdo legal é a participação de artistas nacionais e internacionais que desenharam os orixás mantendo seus estilos originais, simplesmente incríveis.