Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha – Humor demais, reflexões de menos

Victoria e Abdul: o Confidente da Rainha (Victoria e Abdul, 2017) é o mais novo filme de Stephen Frears, diretor de A Rainha (The Queen, 2006) e Philomena (2013), e traz a incrível Judi Dench no papel de uma regente cansada, já em seus últimos anos de reinado (e de vida) , após 62 anos desde sua coroação, até então o reinado mais longo da Grã-Bretanha (recorde batido recentemente pela a atual rainha, Elisabeth II). Os últimos anos do século XIX também eram o auge da colonização britânica no subcontinente indiano e a dominação inglesa trazia não apenas mais riquezas para a, ainda, maior potência mundial da época como também um enorme aumento no interesse pela “exótica” cultura dos povos subjugados do Oriente.
O filme é inspirado em uma descoberta recente, um segredo guardado por muito tempo, de que a Rainha Vitória havia mantido amizade com um servo indiano em seus últimos dias de vida. A descoberta foi feita quase acidentalmente pela jornalista Shrabani Basu, que ao visitar o castelo de veraneio da rainha ao pesquisar seu gosto pela comida indiana descobre uma série de cadernos e diários com exercícios de urdu, língua indiana que era ensinado para ela por Karim Abdul. Basu então decidiu investir na pesquisa que resultou no livro “Victoria & Abdul: a incrível história real do confidente mais próximo da rainha“.
Frears decide contar esta história de forma bastante bem-humorada, tirando sarro das inumeráveis tradições e regras de etiqueta da corte, como em um banquete em comemoração aos 50 anos de reinado de Vitória a rainha dorme ali mesmo na mesa na frente de uma centena de convidados dando, inclusive, ruidosas roncadas, ou pouco antes quando todos têm seus pratos recolhidos enquanto ainda comem pois devem, segundo as regras da corte, estar sincronizados com a incrível (e hilária) velocidade em que a octogenária senhora come.
A amizade entre Vitória e Abdul (Ali Fazal), no início, parece nascer quase como uma teimosia por parte dela e uma veneração quase divina por parte dele, e o que me incomodou bastante foi ver um homem indiano, em pleno apogeu do Império Britânico sob seu país, se entregar tão amavelmente à representante maior de seu algoz, quase como se fosse um cachorrinho de uma raça exótica que a rainha curiosamente e a despeito de todos decidiu criar. E o mais delicado é que tal representação é orquestrada por um tradicional cineasta britânico, como o é Stephen Frears. A única figura que demonstra um mínimo de sensatez sobre esta questão é Mohammed (o ótimo Adeel Akhtar), o outro indiano mandado para servir na corte, sempre reclamando indignado da subordinação do companheiro, personagem que poderia gerar uma reflexão bem mais consistente, mas que infelizmente é muito subutilizado na trama.
O filme certamente merece as indicações nas categorias de melhor figurino e melhor maquiagem e penteado no Oscar desse ano, e tecnicamente é tão tradicional quanto a corte inglesa. Judi Dench, como sempre, está impecável no papel, nos entregando uma rainha cansada e aborrecida, mas conseguindo tirar uma comicidade desta situação, mantendo, claro, a elegância de sempre. Curiosamente não é a primeira vez que Dench encarna a mesma monarca, em Sua Majestade Mrs. Brown (Mrs Brown, 1997), temos uma rainha Vitória um pouco mais jovem, em luto após a morte de seu marido, o Príncipe Albert, em 1861. O filme traz um enredo bem parecido com Victoria e Abdul, tratando sobre um fiel servo escocês que cria, também, um forte laço de amizade com ela, sendo o responsável por fazê-la voltar a sorris após sua perda, mas causando uma inevitável polêmica por ser um homem “do povo”, e gerando fofocas em meio a uma crise no país.
Mas o que enfraquece Victoria e Abdul é justamente essa escolha por querer falar de uma amizade improvável, fazendo uma tentativa de criar um clima de sentimentalismo que até funciona, devido a experiência do diretor nesta temática, ao invés de tocar mais veementemente em temas que seriam muito mais pertinentes, acabando por se tornar mais um de uma longa tradição de obras ocidentais que brincam com um imaginário sobre o oriente, e se alguma vez Frears tentou exatamente desmistificar isto, na minha opinião este tiro saiu pela culatra.
PS: o livro “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente“, do pesquisador palestino Edward W. Said é um tratado fundamental sobre esta tradição que menciono no parágrafo acima. Falo mais dele no texto O Orientalismo no filme “O Homem Que Queria Ser Rei” (1975), vale dar uma olhada.