A Bela e a Fera – A necessidade de se reiterar boas narrativas

O fim da década de 80 deu início a um dos momentos de maior efervescência criativa na casa do Mickey. O período conhecido como a “Renascença Disney”, iniciado em 1989 com o lançamento de A Pequena Sereia (The Little Mermaid), nos trouxe grandes e memoráveis filmes de animação, como Aladdin (1992), O Rei Leão (The Lion King, 1994), Mulan (1998) e, claro, A Bela e a Fera (Beauty and the Beast, 1991). Talvez um dos longas lembrados com mais carinho pelos fãs, a animação foi um marco na história do estúdio, não apenas pelo encanto de seus personagens e pelas maravilhosas canções assinadas por Alan Menken e Howard Ashman, mas também pela inovação tecnológica ao unir animação tradicional e CGI (animação por computador). Na cena do baile, uma das mais memoráveis do longa, temos a impressão de que há uma câmera presente no salão que se movimenta acompanhando os personagens, auxiliando ainda mais no processo de imersão do público. A Bela e a Fera ainda conseguiu a proeza de entrar para a história do cinema ao ser a primeira animação indicada ao prêmio de melhor filme no Oscar. Dito tudo isso, e levando em consideração o fato de que não se passou tanto tempo assim desde o seu lançamento, a pergunta que surge é: precisava mesmo de um remake agora?
Essa é uma estratégia que sempre vai dividir opiniões. Há quem veja relevância em trazer histórias já contadas anteriormente e apresentá-las para uma nova geração, através de um formato diferente e, quase sempre, tecnicamente moderno, e há quem julgue a atitude como preguiçosa e nada criativa. O fato é que a Disney parece verdadeiramente disposta a investir em nostalgia, estratégia que tem se mostrado bastante lucrativa até então, trazendo os seus clássicos animados para o cinema novamente, dessa vez em live-action. Seja apresentando uma releitura, como aconteceu em Malévola (Maleficent, 2014), ou prestando uma homenagem ao seu legado, como é o caso de A Bela e a Fera (Beauty and the Beast, 2017), dirigido por Bill Condon.
O longa, indicado aos Oscars de Melhor Figurino e Melhor Design de Produção, funciona como uma cuidadosa e estonteante celebração do clássico de 91, revisitando uma “história tão velha quanto o tempo”, ao passo que propõe sutis atualizações em sua narrativa, seja através da introdução de novos personagens, enquanto percebemos um breve aprofundamento de outros já conhecidos e queridos pelo público; novas canções que, novamente sob o comando de Alan Menken, evocam a magia dos musicais Disney que marcaram a vida e o coração de muitos; ou de um universo cuidadosamente elaborado para traduzir a beleza da animação pro “mundo real”.
A artificialidade, muitas vezes evidente, dos cenários externos, em nenhum momento chega a ser um incômodo, não apenas por sabermos que se trata de um filme de fantasia, mas pelo excelente trabalho de uma meticulosa direção de arte, que apresenta ambientes, externos ou internos, ricos em detalhes, com uma agradável composição cromática e que parecem interagir com os personagens, seja de uma maneira mais ostensiva, como a deterioração continua do castelo da Fera, que acompanha a de seus habitantes, ou de uma forma mais atenuada, como nas cenas em que a nossa protagonista é introduzida ao público, ou está casualmente observando a Fera de uma das janelas do castelo, por exemplo. Nos últimos dois casos, apesar do forte contraste entre o singelo e o suntuoso das locações, a composição é pensada para valorizar a protagonista, que salta aos olhos, seja pela cor do seu figurino, ou por uma luz que incide na personagem, atribuindo a ela uma atmosfera quase celestial e ressaltando aquilo que todos já sabemos: ela é diferentona. E da melhor maneira possível!
Emma Watson entrega uma Bela mais contida, misturando inocência, sensibilidade, coragem, inteligência e beleza na medida certa. Além de muita independência. É perceptível a preocupação em manter no espectador que já conhece a animação a imagem da icônica personagem, ao mesmo tempo em que busca apresentar e estabelecer essa identidade, através das cores, no público que está tendo seu primeiro contato com a obra, garantindo o seu reconhecimento independente do formato em que ela é apresentada. Um bom exemplo de como as cores podem auxiliar na familiarização e identificação do personagem, ainda dentro do filme, é a caracterização do Gaston, brilhantemente interpretado por Luke Evans. Apesar do ator não apresentar a mesma imponência física do personagem em sua versão animada, as cores da indumentária, além do penteado, auxiliam na sua localização e identificação.
Outra grata surpresa do filme são os já queridos personagens secundários interpretados por um time de peso, que fazem um excelente trabalho de voz: Orloche (Ian McKellen), Lumière (Ewan McGregor), Madame Samovar (Emma Thompson), entre outros. Há uma cena, ainda no início do longa, onde vemos a dupla de amigos Orloche e Lumière antes de serem transformados em objetos. O mais legal dessa cena é perceber a preocupação em “esconder” a identidade humana dos personagens colocando o foco nos objetos que eles carregam, representando as funções desempenhadas por eles enquanto empregados do rei, e mostrando o que eles viriam a se tornar mais tarde.
A transposição do visual cartoon pro realista ficou incrível, e funciona com todos os objetos! É notória a atenção e o cuidado aos detalhes no design e caracterização, imprimindo nos personagens uma textura quase palpável de tão bem realizada. Infelizmente, o mesmo não ocorre com a Fera (Dan Stevens), que apesar de muito expressiva, se movimenta de uma forma bastante rígida e, em muitos momentos, acaba não convencendo como uma criatura real, diferente do que vimos na versão live-action de Mogli: o Menino Lobo (The Jungle Book, 2016), por exemplo. Pessoalmente, não me incomodou e não acho que isso prejudique o envolvimento emocional do espectador com o personagem, mas falo isso do ponto de vista de alguém que cresceu assistindo à animação e que já tem um envolvimento estabelecido com o personagem desde sempre.
A versão live-action da Bela e a Fera supera a animação? Não. Em nada. Mas esse nunca foi seu objetivo. É impossível superar o insuperável. No entanto, o filme funciona ao homenagear e revisitar a história, respeitando e valorizando o material de origem, apresentando-o para uma nova geração com exigências talvez um pouco diferentes das que foram estabelecidas no início da década de 90. É um filme deslumbrante visualmente, com uma excelente trilha sonora, e que com certeza vai te deixar com um sorrisinho no rosto. No entanto, se você busca embarcar numa viagem através de um caminho sinuoso, com desafios que te provoquem, talvez esse filme não seja para você. Porém, se a sua intenção é seguir por uma estrada tranquila, já conhecida, e que te leva a um lugar agradável, as chances de se decepcionar são bem menores.
Além disso, a ideia motriz da narrativa, que é a importância da disposição de enxergar além das aparências e de cultivar o respeito ao que é diferente de você, continuam presentes e se fazem, infelizmente, cada vez mais necessárias de reiteração. O filme também alerta para o fato de que: o medo, a ignorância e o preconceito em relação ao desconhecido podem causar grandes estragos na mente das pessoas; fazendo, inclusive, com que elas, tomadas por uma histeria coletiva, sigam o comando de um monstro real a fim de combater um outro hipotético (geralmente forjado pelo real), achando que estão fazendo a “coisa certa”. Sempre que possível, é bom lembrar às pessoas do perigo que isso pode causar. A Bela e A Fera faz isso, ao mesmo tempo que te faz acreditar que é possível ultrapassar essas limitações e, assim, viver num mundo bem mais amplo.
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Marciano Palácio
Do Iguatu para o mundo, Marciano é jornalista, ilustrador freelancer, designer de personagens e príncipe encantado nas horas vagas. O queridinho das divas e dos ícones da cultura pop desenha desde os 3 anos e sonha em trabalhar na Disney, é fã da Elvira, da Lady Gaga e de imaginar as princesas em situações inusitadas.