Chegamos, enfim, ao último dia da Mostra Percursos (você pode conferir os textos do primeiro dia aqui e do segundo, aqui). As sessões apresentadas no sábado foram Videodrome, As Montanhas se Separam e Rainhas do Mundo
Abrindo a sessão temos o curta Um Assunto Meio Delicado. O trabalho, produzido por uma turma de uma disciplina do curso de Cinema e Audiovisual da UFC, com fotografia e finalização assinadas por profissionais e escrito e dirigido pelo professor Marcelo Ikeda, é até bastante simples: Evan é uma pessoa insegura, amarga, arrogante e rancorosa que, não conseguindo lidar com as orientações de seus professores desabafa com seu melhor amigo Gustavo que, embora não fique muito claro, poderia ser muito mais do que isso. É um filme que fala de maneira satírica e caricata sobre a relação entre professor e aluno, primeiramente, tendo suas outras questões colocadas mais em segundo plano, talvez olhando por esse lado, não houvesse lugar mais apropriado para estreá-lo do que nesta mostra, de curadoria e organização universitária. O uso excessivo de primeiros planos frontais nos diálogos nos coloca numa posição incômoda de interlocutor, receptores das mensagens ditas pelos personagens. Em minha interpretação o curta assume a persona de seu protagonista, podendo compartilhar das críticas que foram dirigidas ao trabalho de conclusão de curso de Evan. Periferia Artística, de Luciano Bezerra, retrata de maneira crua a fala do fotógrafo e professor doutor em comunicação, Silas de Paula, que trás, em seu discurso, questões sobre o fazer artístico, o academicismo e sobre o papel e o lugar da arte, sobre autoria e sobre o reconhecimento do que é arte e o que não é. Uma conversa filmada descontraída e desconstruída que vale a pena ser vista. Dialogando com o curta anterior, temos Bruxartistas Ceará, apenas a prévia de uma futura web-série. O curta é também um discurso da artista cearense Bartira Dias, por assim dizer, mas é montado como um grande apanhado de imagens de arquivo da performer, tanto no trabalho quanto em momentos de descontração. O som soturno e o discurso declamado por Bartira, num tom que me remeteu muito à um velho feitiço ou maldição, junto das cenas fortes e poderosas de corpo, de posicionamentos dão ao curta um ar enigmático e de clima pesado, flertando com o filme de terror A Bruxa (The Witch, 2015), embora muito distante da estética do filme de ficção lançado esse ano, mas muito forte em intenção. Deixou em mim a mesma sensação, inclusive, as bruxas de Salém estão vivas.
Humanomáquina, de Marcos Braz, trás um filme experimental que usa narração e gifs de internet pra falar da nossa relação com a tecnologia e da nossa própria natureza, estreitando os limites do que se entende por natural e do que se entende por artificial. Um filme aparentemente simples, mas de linguagem criativa, de montagem inteligente, curto, mas que abre caminho para muitas reflexões. Particularmente, acho que a melhor maneira de propor debates é justamente abordando o assunto da maneira mais simples possível. Já em, A Era de Fogo, do mesmo realizador, mistura outras linguagens. Também se utilizando de arquivos externos, da internet, dessa vez vídeos de momentos que antecederam o golpe à presidenta Dilma Rousseff, discursos da própria, manifestações nacionais e acontecidas aqui na cidade de Fortaleza, discussões acaloradas e acentuadas pela curadoria dos vídeos e pelas escolhas da montagem, sobrepostas a textos e narrações de filmes distópicos. Duros choques da realidade em todos os textos (compreendendo-se o filme como texto também) que evidenciam a assustadora verdade que acontece por trás do cotidiano de notícias e manifestações.
Shogun 414, de Rafael de Jesus |
Fechando a sessão, temos Shogun 414, de Rafael de Jesus (que você já pode assistir online aqui). É difícil entender onde esse filme se encaixa na cronologia das obras anteriores do realizador, que estão todas interligadas no mesmo universo, mas é notória a evolução da estética desde seu primeiro trabalho até aqui (você pode conferir todos através desse link). Rafael de Jesus demonstra muito conhecimento e controle das raízes em que seus filmes se inspiram, a linguagem característica dos tokusatsus também está presente em Shogun, assim como as características de cinema de gênero de ação, moldando um filme muito divertido e compromissado com seu nicho, que entrega exatamente o que poderia propor um filme com luta entre gigantes. E tem cenas pós-créditos!
Os conflitos da comunicação e das relações entre as pessoas com o mundo à sua volta — incluindo objetos, lugares, e outras pessoas — é algo para o qual o cinema constantemente se volta. Conflitos estes que interligam os curtas desta sessão da mostra, onde todos tem algo sobre o que é dito e o não-dito dentro dos contextos inseridos.
Inadequada, de Mylla Fox |
Cidade. Corpo. Espaço. Território. Verbetes que se fazem presentes no mundo da arte como um todo, e que geram incontáveis discussões, e abrem inúmeras possibilidades de diálogo. Na última sessão da Mostra Percursos 2016, a curadoria é profundamente feliz ao apresentar filmes que buscam investigar a relação corpo e espaço, investigação que predomina na maioria das produções do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará, funcionando como uma singela homenagem ao próprio curso. Mais felizes ainda são os filmes escolhidos para compor a sessão, ordenados de forma em que esses verbetes se desenvolvam à sua máxima, em pura catarse, contemplando todas essas relações propostas.
Corpo Estranho, de Grenda Lisley Costa, introduz as questões entre corpo e espaço de forma objetiva, mas orgânica. Uma mulher volta de uma festa, e acompanha um homem que mora em seu mesmo prédio até seu apartamento, onde os dois acabam tendo relações. Na manhã seguinte, ela acorda sozinha no apartamento do homem, como um verdadeiro corpo estranho em um meio ao qual não pertence. A partir daí, ela começa a estabelecer essas relações, se apropriando do espaço ao pegar uma camisa do homem para se cobrir, fazer um café-da-manhã para si, lavar suas roupas e sentir os cômodos, o medindo com seu próprio corpo. Com delicadeza, o filme se aproxima dessa investigação, feita pela própria personagem, de como se relacionar, como ser, em um espaço que não é o seu.
Superdance, de Pedro Henrique Gino |
Em seguida, Superdance, de Pedro Henrique Gino, com seu bando de jovens inquietos e nada sutis, surgem para desbravar o dia, a tarde, e a noite da cidade de Fortaleza, por vezes tão estranha quanto eles mesmos. Em diálogos no mínimo inusitados, a essência excêntrica do que é ser jovem e o desejo de mergulhar e ocupar na própria cidade se faz presente e ecoa por todo filme. É notável o desejo do realizador de pensar a própria cartografia e os territórios da cidade, ao passo em que o bando caminha e existe — por vezes tranquilamente, por vezes fazendo peripécias absurdas, como subir em postes altos, e montar em uma estátua no meio de uma praça — por vários lugares facilmente reconhecíveis de Fortaleza. Eles interagem com o espaço, e buscam, e se apropriam do que é estranho, fora do usual em meio a tudo aquilo. A forte imagética inunda o espectador do começo ao fim do filme, quando vemos um sofá queimando intensamente no meio de uma via, apontando para um momento de catarse.
Antes da Encateria, de Elena Meireles, Gabriela Pessoa, Jorge Polo, Lívia de Paiva e Paulo Victor Soares |
Servindo quase como um prenúncio para o que está por vir, esta última imagem que Superdance nos deixa aponta diretamente para a própria explosão dentro da sessão que é Antes da Encateria, de Elena Meireles, Gabriela Pessoa, Jorge Polo, Lívia de Paiva e Paulo Victor Soares. O filme escolhido para fechar a Mostra Percursos de 2016 é intenso e puro desejo pulsante de fazer cinema. Feito por estudantes de mobilidade que vieram do Rio de Janeiro para Fortaleza, que se uniram para fazer um filme e catalogar suas experiências no Ceará. Tudo no filme é colaborativo, e é visível, em um caleidoscópio de ideias, imagens e performances unidas de uma forma que fala não só da própria percepção do espaço de cada um, mas de cada um deles. Misturando performance, artes visuais, textos e produções deste coletivo, o filme é para além de intenso. É verdadeiro em toda sua inventividade, e é carregado de paixão pelo próprio cinema, pela própria arte.
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Estudante de Cinema quase formada em Letras – Alemão. Fica feliz quando escuta música triste. Se emociona quando fala de The Last of Us e enlouquece de prazer quando o assunto é Harry Potter ou Adventure Time. Apreciadora dos bons clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa. Uma Goonie genuína.
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