Conta Comigo: 30 anos de uma “Sessão da Tarde” com mais de nostalgia e menos de anos 80

 

“As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois, as palavras as diminuem — as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas te olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto as estava contando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.”
Introdução do conto “O Corpo”, de Stephen King.

Algumas coisas ao serem contadas não parecem ser importantes, mas…

O que veio primeiro foi a morte, depois veio a música para depois vir o filme.

Novembro de 1993, morre o talentoso ator River Phoenix, aos 23 anos de idade por conta de uma overdose. Grande promessa de sua geração, a morte prematura do irmão mais velho de Joaquim Phoenix comoveu o mundo. Entre tantas reportagens sobre o ator, teve uma que me marcou muito: falava da amizade do ator com cantor brasileiro Milton Nascimento. A história de amizade entre os dois artistas começou quando o Bituca assistiu a um filme estrelado por Phoenix em 1988 (não era o filme que vocês estão pensando, era A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast, 1986). No mesmo dia ele assistiu outro filme do ator – este sim era aquele que você já estava pensando) A boa impressão que Milton teve do ator (“os olhos de River eram como catalisadores de um sentimento original, qualquer coisa arrebatadora que a qual ninguém ainda havia dado um nome” – palavras do cantor) gerou uma bela canção para o ator estadunidense: “River Phoenix (Carta a um jovem ator)”, “Se um dia a gente se encontrar/ E eu confessar que vi um filme tantas vezes/ Para desvendar os olhos teus”. No meio da reportagem, cenas de vários filmes da curta carreira do ator passavam, embaladas pela singela canção. Entre os filmes, estava aquele que pouco tempo depois, marcaria profundamente uma etapa de minha vida. Fui atrás de saber que filme era que aquele com garotos se aventurando sobre os trilhos. A cada informação que encontrava, pensava: quando ele vai passar na TV?

Algumas coisas que talvez não sejam importantes devem ser contadas antes.

Na década de 80, o cinema de Hollywood consolidava os chamados blockbusters – fenômeno iniciado na década anterior por Steven Spielberg e George Lucas (com um certo predador marinho e com batalhas em galáxias bem distantes). Os filmes “arrasa-quarteirão” eram lançados no verão americano e tinham forte marketing para atrair público, em especial, o jovem, para o qual se criou o filão do Cinema Teen (ou Filmes Teen). São dessa época produções com o selo “Steven Spielberg apresenta”, que faziam enorme sucesso, como Gremilins (1984), De volta para o Futuro (Back to the Future, 1985) e Os Goonies (The Goonies, 1986); além das produções assinadas por John Hughes – o “Spielberg dos adolescentes” (!) – como os clássicos O Clube do Cinco (The Breakfast Club, 1985) e Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986).

 

 

O que há de comum nessas películas é a presença de personagens jovens, em sintonia com as novidades tecnológicas e musicais da época, assim como com o consumismo desenfreado. Eram tempos de novos valores e, com eles, uma juventude mais pragmática, menos ideológica. Nas produções cinematográficas, as crianças viviam num mundo de fantasia – E.T. – O Extraterrestre (E.T. the Extra-Terrestrial, 1982) e Viagem ao Mundo dos Sonhos (Explorers, 1985), como exemplos – e os jovens viviam seus dilemas num microcosmo chamado High School (o Ensino Médio para os norte-americanos) e, junto com esses dilemas, vinham os estereótipos: o nerd que se apaixona pela líder de torcida, o professor neurótico, o amigo rejeitado, o cara mais cool, descolado – normalmente o vilão da história -, e por aí vai.
Sucessos de bilheterias lá e aqui, essas obras – depois do cinema – chegavam até nós em disputados VHS a serem alugados nas sempre convidativas videolocadoras – quando você tinha acesso a uma. Caso contrário, o jeito era esperar passar na TV, a expectativa começava no início do ano quando a Globo anunciava quais filmes iriam passar ao longo do ano em sua programação (o SBT fazia isso também). O ineditismo da obra na emissora ficava a cargo da “Tela Quente”, meses depois o filme era reprisado pela primeira vez aos domingos na “Temperatura Máxima” e nos anos seguintes ele povoava, pelo menos uma vez por ano, a querida “Sessão da Tarde”. Era nesse horário, que muitos filmes conquistaram fãs e receberam das gerações dos anos 80 e 90 o título de “clássico”. No meio de tantos clássicos tão lembrados atualmente – A Lagoa Azul (The Blue Lagoon, 1980), Namorada de Aluguel (Can’t Buy Me Love, 1987), só para citar alguns – há uma produção estadunidense que destoou bastante de todo este universo criado pelo Cinema Teen, lançada no mesmo ano das aventuras de um certo “Bueller! …Buller! …” e Top Gun: Ases Indomáveis (Top Gun, 1986), que não tinha “cara” de anos 80. Estamos falando de Conta Comigo (Stand by Me, 1986).
Não me recordo o ano, mas o filme foi anunciado entre os grandes filmes a ser exibido pela Globo. Então esperei, esperei e nunca foi anunciado na Tela Quente ou até mesmo no Supercine. Pois num é que numa tarde despretensiosa de 1994, o filme tava passando na Sessão da Tarde! Perdi o começo. Antes tarde do que nunca!
Algumas coisas para potencializar as palavras e transformar em uma boa adaptação.
Conta Comigo é baseado no conto “Outono da Inocência: O Corpo” (The Body), de Stephen King, e originalmente lançando no livro As Quatro Estações (Different Seasons, 1982). Ao invés do universo do terror – muito característico nas obras de King – amizade e redenção aparecem como temas na obra. Os filmes Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption, 1994) (outra ótima adaptação), de Frank Darabont, e O Aprendiz (Apt Pupil, 1998), de Bryan Singer, são adaptações de outros contos desse mesmo livro. A adaptação do conto que se transformou em Conta Comigo foi bastante elogiada, por manter as qualidades da obra literária, construindo assim, uma obra equivalente ao original. O filme não deixa de ser uma tradução de um pequeno conto (de 121 páginas) para a tela. Eis um dos méritos para o sucesso do filme: o roteiro adaptado de Raynold Gideon e Bruce Evans, roteiristas de Starman – O Homem das Estrelas (Starman, 1984).
“O Corpo” é considerado o conto mais pessoal da carreira de King, já que a estória remete à infância do escritor, à primeira vez que King viu um cadáver. A trama gira em torno de quatro amigos que passam a infância na pequena cidade de Castle Rock no Estado de Oregon (no conto, a história se passa no Maine, Estado natal de King), no final do verão de 1959, e que, ao tomar conhecimento do desaparecimento/morte de um adolescente, decidem ir à procura do corpo da vítima.

 

 

Este é um drama protagonizado por adolescentes, o qual apresenta questões sobre amizade, crescimento pessoal, ritos de passagem e sentimento de perda que surpreendeu o público da época por ser baseado numa obra incomum de King (à época, bastante consagrado por seu estilo ligado ao suspense e ao sobrenatural). Contudo, se analisarmos o filme com mais atenção, encontraremos um elemento muito comum nas obras do escritor: o medo. Em Conta Comigo, o medo não precisa de algo sobrenatural para existir; basta apenas que ele se aproxime do cotidiano dos quatro garotos que estão saindo da infância e chegando à adolescência. Daí temos: o medo de se deparar com um cadáver, de ser atropelado por um trem, fugir de um cão feroz para não ser atacado por ele, o medo de um bicho ficar preso em nossas calças e principalmente, o medo do fim da infância.
Algumas coisas para contar sem reduzir a obra a mais um clássico da “Sessão da Tarde”
Mas afinal, depois do estrondoso sucesso de Os Goonies, quem se interessaria em assistir a um filme, misto de drama com road movie (só que sem estrada!), protagonizado por quatro garotos a procura de um cadáver, baseado num conto de um consagrado escritor de terror e sem a participação de Spielberg ou John Hughes? Conta Comigo conseguiu este feito. O filme foi lançado em agosto de 1986, ao custo de U$$ 8 milhões, e rendeu U$$ 52 milhões, ficando em 2º lugar na arrecadação de bilheteria durante um bom tempo.
A obra utiliza bem a cartilha da estética clássica do cinema. Um roteiro aparentemente simples e desenvolvido numa narrativa direta com os três atos (apresentação, conflito e desfecho), um narrador, drama e humor na medida certa e a presença de antagonistas (a gangue de Ace). A morte é o elemento que dá início e o fim da jornada (a notícia e o encontro com a morte através do cadáver). Ao longo da jornada (cheia de percalços) de nossos heróis, os segredos revelados e flashbacks levam o espectador a conhecer a complexidade dos personagens: o rebelde Chris (River Phoenix), o introspectivo Gordie (Wil Wheaton), o explosivo Teddy (Corey Feldman) e o bobão Vern (Jerry O’Connell). Vale ressaltar a boa sintonia entre os quatro garotos que encarnam o espírito do que é ter amigos na infância. Na época, Corey Feldman era o mais famoso do grupo, já havia participado de outras grandes produções (entre eles Os Goonies!), mas foi o dono do personagem que era o líder do grupo que obteve grande sucesso nos anos seguintes. River Phoenix – citado anteriormente – teve um fim tão trágico quanto à de seu personagem Chris.
Não são apenas a amizade e a oportunidade de serem famosos ao achar o cadáver que os unem. Entre eles, há o sentimento de perda (seja de um ente, do respeito, da sanidade ou de uma pequena fortuna) e o inevitável destino de crescer e aceitar a vida como ela é ou como ela se apresenta diante deles. Temas bastante presentes no cinema clássico norte-americano estão lá: amizade, lealdade e crescimento. Por se tratar também de um road movie, há uma viagem única que vai mudar a vida dos personagens para sempre; há surpresas no meio do caminho; o trajeto em si é mais importante do que o destino final e a presença de planos abertos com personagens perdidos na imensidão da paisagem. Já os planos médios (enquadrando os quatro amigos) e primeiros planos (com o uso do plano e contra-plano) são utilizados para mostrar os personagens e criar uma proximidade com o espectador, como se ele fosse quase um quinto integrante do grupo.
A belíssima fotografia de Thomas Del Ruth, com uma luz em tons amarelos durante a jornada e no desfecho, a luz utilizada parece anunciar o fim do verão e o início do outono. Aliada a fotografia, estão o figurino e a trilha sonora para transmitir ao espectador uma intimidade com o ambiente em que os garotos transitam. Capitaneada pela canção que dá título ao filme, “Stand by me” na voz de Ben E. King, a trilha foi mais além do que várias trilhas sonoras da década, ricas em sintetizadores.
 
 
Algumas coisas para contar e lembrar.
Todos esses fatores levam Conta Comigo a ser um filme que foi realizado nos anos 80, mas que não reside apenas nessa época. É uma obra atemporal e sua intenção continuará intacta: levar o espectador de volta a sua infância, no mais puro sentimento de nostalgia. É um retrato nostálgico da infância, e, (porque não dizer?) do próprio Stephen King. É essa saudade idealizada tão presente nos saudosistas dos anos 80 e muito forte em Conta Comigo que o aproxima dos filmes dos anos 80 ou de quem viveu nela. Não que a maioria dos filmes tratasse desse tema, mas a nostalgia reside no adulto de hoje que foi criança na “década perdida”, que supervalorizou obras que hoje não tem o mesmo impacto da época e que envelheceram mais do que ele.
Mesmo sendo nostálgica, a obra de Rob Reiner não busca a consagração da infância, apenas humaniza seus personagens e o que acontece é que o espectador nostálgico encarna o espírito de Gordy, o personagem/narrador que prefere idealizar sua infância, mesmo perdendo os amigos pelo caminho da vida.
No final do longa, ele escreve: “Nunca tive nenhum amigo depois, como quando tivera quando tinha 12 anos. Jesus, alguém teve?”. E eu pergunto: Mas quem realmente se esforçou pra continuar mantendo, Gordy? Já pensou se mantivéssemos? Dava para gente confidenciar as coisas que vivemos ao longo de nossas vidas e ainda dava para cantar aquela canção do Milton: “E se a gente se falar/ Contar as coisas que vive/ O que esperamos do amanhã/ Será que pode acontecer?”.