“O Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro”
O trecho acima traduz, em poucas palavras, o conceito de Deus e do Diabo enquanto são seres inseparáveis, ou seja, um não existe sem o outro. Essa diferença e, simultaneamente, completude são representadas em diversas formas e em diversas culturas; temos, por exemplo, o yin e o yang, na cultura oriental; o bem e o mal, na cultura ocidental; Deus e o Diabo, na cultura cristã.
O Diabo, assim como Deus, tem fundamental papel no sistema religioso judaico-cristão. Deus sendo o todo-poderoso, fonte de todo o bem, e o Diabo, invejoso por natureza, que surgiu para se opor a Deus, sendo assim a fonte do mal.
Primeiramente vale destacar que o Diabo é a figura que, através dos tempos, vem representando o mal e preenchendo páginas da literatura sobrenatural através dos séculos. Fazendo um breve estudo sobre a(s) figura(s) do Maligno através do tempo, percebemos que este assume diferentes papéis e características. Dentro da própria Bíblia, algo que parece passar despercebido para muitos fiéis, surgem diferentes Diabos e não um só como se costuma propagar, no antigo testamento temos a figura do torturador que atormenta Jó; no novo testamento temos uma figura ambígua do Diabo, ao mesmo tempo inimigo de Deus e realizador de sua vontade.
Em um primeiro momento, poderíamos afirmar que a figura do maligno aparece como sendo um inimigo do homem, mas não de Deus, sugerindo a ideia de um ser decaído, condenado etc. No segundo, constrói-se a figura do anjo decaído, de um ser vivente neste mundo (mundo terreno com o domínio de Lúcifer), aquela figura pouco mencionada no Antigo Testamento, agora, mostra-se com mais frequência.
Continuando o estudo, nota-se que na Idade Média surge um novo conceito de Diabo, nesta época não existia apenas um Diabo, mas, sim, vários Diabos.
Para finalizar esta breve explicação sobre a metamorfose do Diabo através dos tempos, destaco o que o teórico Kalokowski considera, o demônio tem três faces: a primeira seria a face do terrível, na qual a figura do Diabo se aproxima mais do ensinamento oficial católico; a segunda seria a face grotesca, retratando o Diabo por meio das manifestações populares e folclóricas, em numerosas lendas, estórias e contos; a terceira face do Diabo é a trágica, esta sendo construída, sobretudo, pela figura literária do livro Paraíso Perdido, de John Milton.
A arte de recriar
Todo aquele que lê Saramago, mais cedo ou mais tarde vai notar que uma das suas técnicas de composição e de escrita é justamente prender a narrativa a fatos ou personagens históricos. Só para exemplificar, temos isso em Memorial do Convento (1982) e História do cerco de Lisboa (1989), portanto Saramago é considerado um mestre na arte de fazer um romance histórico ou recriar um acontecimento.
No caso do romance Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago recria o mundo que, na cultura popular, teria sido vivido há cerca de 2000 anos. No estudo do romance histórico, podemos destacar duas linhas básicas de estudo, e as duas são cabíveis aqui. A primeira seria a de intertextualidade, já que o romance é uma releitura da Bíblia, com a qual há um constante diálogo. Outro conceito aqui trabalhado é o conceito de mentalidade e imaginário propostos por Hilário Franco Júnior. Para ele, a mentalidade seria um conjunto de comportamentos espontâneos, pensamentos e sentimentos em comum. Mentalidade é um traço de uma cultura que existiu de maneira mais estável em uma delimitação espacial e temporal.
Imaginário cristão x desconstrução
O imaginário cristão que aqui tratamos vem desenvolvendo-se, sobretudo, à partir da Idade Média. É durante este longo período histórico que desenvolve-se a figura do Diabo como um ser maligno ou representação do mal. Aqui, a figura de Satã torna-se responsável pela queda do homem do paraíso, já que esta seria a única maneira de atingir Deus. Esta “imagem” do Diabo como um ser maligno perdura até hoje, principalmente na cultura ocidental, maniqueísta, onde sempre existiu e sempre existirá essa luta entre Deus e o Diabo, bem e o mal.
A literatura contemporânea, indagadora, revolucionária, procurando sempre novas formas de se fazer arte, propõe a desconstrução de conceitos e regras pré-estabelecidas. Esta nova maneira de pensar e fazer arte tem origem no Iluminismo e, consequentemente, na revolução francesa. Seu efeito já é de imediato visto nos poemas e romances românticos, que se constroem com metrificações livres, temas tétricos e góticos, com a valorização da pátria etc.
José Saramago, representante exímio dessa postura, utiliza destas técnicas de desconstrução de um texto já escrito (a Bíblia) e o reconstrói de uma maneira completamente nova.
A primeira aparição, durante a peregrinação do deserto, mostra-nos Deus propondo algo a Jesus, não é revelado ainda o que seja, mas há uma ideia de troca ou barganha, temos aqui o primeiro aspecto da inversão de papéis, seria uma espécie de mefistofelismo às avessas, no qual Jesus parece fazer um acordo com Deus em troca de algo, no caso do texto seria glória e poder. Outro aspecto que nos remete é que no texto bíblico quem perturba Jesus no deserto é o Diabo. Na segunda aparição, Deus revela a Jesus ser um dos seus pais, porém o sentimento que notamos no trecho transcrito, não é de fraternidade, na verdade temos Deus intimidando Jesus, dizendo que ele terá ou sentirá medo.
A comprovação máxima de inversão de papéis vem quando Deus revela seu plano ambicioso de deixar de ser Deus dos Hebreus e passar a ser Deus dos católicos, nem que para isso faça de seu filho um “mártir” e uma vítima, “duas palavras que saíram da boca de Deus como se a língua que dentro tinha fosse de leite e mel.” Há também, novamente, a questão do mefistofelismo às avessas, em que Deus promete vida eterna “Bem, não estarás precisamente morto, no sentido absoluto da palavra, pois, sendo tu meu filho, estarás comigo, ou em mim”, poder e glória, “Disseste-me que me darias poder e glória, balbuciou Jesus, ainda tremendo de frio, E darei, e darei, mas lembra-te do nosso acordo, tê-los-ás, mas depois da tua morte”. Temos aqui a crueldade de Deus que manda o próprio filho para morte com o pretexto de aumentar seus domínios em poucos séculos, deixando de ser o Deus dos hebreus para passar a ser o Deus dos católicos.
José Saramago apresentou-nos, então, sua versão dos textos bíblicos. Ela recria todo o ambiente e contexto no qual viveu Jesus e, através de suas metáforas, Saramago mostra-nos um Jesus humano, um Jesus corruptível, e um Deus egoísta, ambicioso e cruel, que sacrifica a vida do próprio filho em nome de glória e poder através dos séculos.
Atual Vice-presidente da Aceccine e sócio da Abraccine. Mestrando em Comunicação. Bacharel em Cinema e formado em Letras Apaixonado por cinema, literatura, histórias em quadrinhos, doramas e animes. Ama os filmes do Bruce Lee, do Martin Scorsese e do Sergio Leone e gosta de cinema latino-americano e asiático. Escreve sobre jogos, cinema, quadrinhos e animes. Considera The Last of Us e Ocarina of Time os melhores jogos já feitos e acredita que a vida seria muito melhor ao som de uma trilha musical de Ennio Morricone ou de Nobuo Uematsu.