American Gods e a necessidade de acreditar

O conceito de deus permeia a humanidade desde que o ser humano começou a buscar explicações e padrões para os fenômenos que aconteciam à sua volta. Atribuir emoções e personificar a resposta para qualquer pergunta em uma figura sobrenatural permitiu que o homem compreendesse melhor a natureza, e como o conhecimento é libertador, esse fato  trazia uma sensação de segurança e conforto para a humanidade, ao mesmo tempo que ausentava a culpa de suas ações.

A ideia dessas divindades sempre esteve em constante mudança e evolução. No começo, os deuses estavam relacionados ao contato direto com a natureza e com o contexto em que determinado povo vivia, sendo o animismo a crença predominante da época. Com o tempo essas deidades deixaram de personificar apenas algo que proporcionava proteção e alimento para obterem complexidade e um caráter mais carnal, assim dando origem ao politeísmo, onde os deuses faziam a mediação do homem com a natureza, como o deus fogo transformando-se no deus do fogo. Posteriormente, para centralizar o poder e manter a ordem de um contingente maior de pessoas, surgiu o monoteísmo. Por ser uma religião missionária e universal, enquanto as outras eram locais, exclusivas e tolerantes, ela conseguiu se expandir com uma velocidade jamais vista, sendo toda a ordem mundial atual erguida nas bases do monoteísmo.

Entretanto, mesmo o monoteísmo pregando a existência de um único deus, algumas religiões dessa vertente ainda mantém uma espécie de culto politeísta, como os santos no cristianismo. Esse sincretismo religioso possibilitou a metamorfose e a atualização das divindades clássicas ao longo da história, mudando seus focos de poder e comportamento, mantendo sua essência, porém transformando-se em deuses mais complexos, deuses humanos, deuses americanos.

American Gods é uma série criada por Bryan Fuller (Hannibal) e Michael Green (Logan), lançada pela Amazon Prime Video em 2017. Baseada na obra de Neil Gaiman, o programa conta a história de Shadow Moon (Ricky Whittle) um ex detento que, com a morte da esposa Laura Moon (Emily Browning), se vê perdido no mundo, achando um propósito ao trabalhar como guarda costa do Mr. Wednesday (Ian McShane) e com isso descobrindo todo uma nova realidade de velhos e novos deuses que aparentemente estão prestes a guerrear.

A obra se baseia em dois argumentos. O primeiro é que deus é um conceito muito subjetivo. Sendo assim, a mesma entidade pode ter várias faces dependendo da interpretação do seu povo e da época em que ela atua. Então, toda cultura que chegava ao novo continente trazia consigo um aspecto do deus do seu local de origem, assim, criando uma nova versão do mesmo, a partir das experiências adquiridas na trajetória para a América e no seu tempo morando na terra das oportunidades.

Essa ideia é muito bem trabalhada durante a primeira temporada com os curtas introdutórios aos episódios denominados Coming to America. Inclusive, isso não é exclusividade do paganismo, sendo Jesus personificado com diversas nacionalidades, etnias e trejeitos em determinado episódio.

Além disso, o roteiro tem uma sutileza simples, porém muito bem utilizada para fundamentar esse argumento: O nome que cada entidade usa para denominar o seu semelhante. Por exemplo, Kali, a deusa Hindu da guerra e da destruição é chamada também de Mama-ji e Thor é nomeado de Donar.

O segundo argumento do programa é que a partir da adoração e da fé é criada uma entidade. Logo, quando as pessoas dedicam boa parte do seu tempo assistindo televisão, mexendo no celular e baseando suas vidas no consumo dessas tecnologias, isso é interpretado pelo Autor como uma espécie de sacrifício, consequentemente, um novo deus nasce através desta adoração.

Esse conceito de adoração também se aplica aos deuses e criaturas ancestrais que optaram por se modernizar, como Argos Panoptes, um monstro de cem olhos da mitologia grega que achou nas câmeras de vigilância um novo foco de poder, usando-as como os seus novos olhos. Também é mostrado Vulcan, deus romano do fogo e da forja, conhecido também como Hefesto. Este achou na fabricação de armas de fogo e balas um novo centro de poder, tornando-se muito relevante e poderoso no Estados Unidos, graças a segunda emenda da constituição norte americana.

Obviamente, esse é um artifício de Gaiman para criticar e discutir a nossa sociedade atual, entretanto, religião pode ser definida como um sistema de normas e valores humanos que utilizam do sobrenatural para ditar a moral, ética e comportamento de um grupo, com isso dando uma noção de pertencimento. Nesse contexto, ideologias, como o capitalismo, comunismo e nacionalismo, podem ser vistas como uma espécie de religião moderna, afinal todas esses conceitos ditam o modo que uma sociedade vive e dão uma sensação de união para os seus seguidores, ainda mais nesse momento tão polarizado em que estamos vivendo. Então, expandir essa ideia para os mais diversos contextos é totalmente crível e funcional.

O fato é que nos moldes atuais da nossa sociedade somos obrigados a acreditar em certas concepções para conseguirmos co-existir. Como o dinheiro, por exemplo. O sistema monetário é simplesmente um acordo mundial feito por todo um inconsciente coletivo que legitima um pedaço de papel valer algo a mais do que papel. O dinheiro só tem todo esse poder e significado porque atribuímos um valor a ele e acreditamos que outro indivíduo também atribuirá. Esse deus é mostrado na série de uma maneira interessantíssima, já que o dinheiro é destituído de interesses e inclinações.

Um outro ponto alto do programa é a sua abertura que sintetiza todo o sentimento que a trama quer transmitir. A música evoca uma espécie de ritual, enquanto um totem é formado utilizando para isso diversas representações mitológicas, mostrando a evolução de diversos símbolos religiosos até o ponto em que a tecnologia funde-se com a religião de tal maneira que as duas tornam-se uma, representado muito bem pelo astronauta crucificado.

Por fim, a abertura encerra-se com uma águia utilizada como símbolo máximo do totem, está figura sendo reconhecida em diversas culturas como um animal etéreo, além de ser o principal símbolo de poder da América, país este que dissemina e injeta sua cultura ao redor do mundo inteiro.

A primeira temporada, com seus oito episódios, é utilizada praticamente como uma introdução de universo. Nela somos apresentados aos personagens, sempre de maneira detalhada e com calma. Todo deus tem o seu momento, seja antigo ou novo e como acompanhamos tudo pela visão do Shadow, os diretores e roteiristas conseguiram transmitir uma sensação de estranheza e incômodo com a clara falta de informação do protagonista.

A fotografia lindíssima, juntamente com a violência plástica concedem uma estética única para o seriado. Além disso, os diálogos inteligentes e simbólicos despertam no público o interesse de ir atrás para consumir mais desse conteúdo. Infelizmente, se o espectador assistir a primeira temporada de maneira passiva, ele pode ter certa dificuldade para entender o que está acontecendo em determinados momentos, isso ao meu ver é uma falha do programa, afinal, ele deve se sustentar por si só, sem precisar de nenhuma informação externa para sua trama ser entendida.

A segunda temporada, lançada em 2019, por sua vez, tem como foco a expansão do universo de Gaiman, mostrando personagens, situações e motivações ausentes no livro, mas condizentes com a proposta da obra original.

 

Entretanto, a produção do segundo ano foi repleta de complicações, devido a saída dos showrunners originais e das atrizes que interpretavam as personagens Mídia (Gillian Anderson) e Easter (Kristin Chenoweth). Isso prejudicou muito a estrutura dos 8 episódios, dando uma sensação de enrolação e de estagnação da narrativa. Desenvolver os personagens é algo essencial, porém, esquecer de avançar a trama de maneira significativa para dar lugar a episódios inteiros de diálogos e ações repetitivas sem uma função clara de evoluir a narrativa pode gerar uma sensação de que os roteiristas sabiam da onde queriam sair e aonde queriam chegar, mas precisavam entregar 8 episódios para o canal.

American Gods é uma adaptação que respeita o seu material de origem ao mesmo tempo em que expande e atualiza conceitos escritos por Gaiman no início do século 21. É visualmente linda e repleta de subtextos, além de entregar monólogos memoráveis, em especial o do deus africano Anansi (Orlando Jones). Apesar da série pecar no seu ritmo e na apresentação de informações para o público geral, ela é um excelente produto de mídia para discutir a nossa sociedade atual, juntamente com os dogmas e crenças que seguimos a séculos sem contestar. A humanidade sempre teve a necessidade de acreditar em algo, mas agora precisa aprender também a questionar, afinal, os deuses  sempre irão existir, basta acreditar neles.