Coração de Ferro – Blindada e preparada para voar

O mundo dos heróis nunca foi o mesmo após Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019), mas aqui não é uma posição de fã relacionando qualidade e hype, mas sim como as coisas funcionam dentro do MCU (Marvel Cinematic Universe, ou em português, Universo Cinematográfico da Marvel) depois de metade do universo simplesmente desaparecer por cinco anos. Cada vez mais existem pessoas com poderes, armaduras, fantasias, de outros planetas, dimensões ou até universos. E, honestamente, é refrescante quando lidamos com uma narrativa mais contida em si como é o exemplo da série Coração de Ferro (Ironheart, 2025), onde o diretor da duologia Pantera Negra e do filme de terror musical Pecadores (Sinners, 2025), Ryan Coogler, atua como produtor executivo. A protagonista é a jovem Riri Williams, interpretada desde Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever, 2022) pela atriz Dominique Thorne, e sua missão no mundo é conseguir usar seu intelecto para manter as pessoas que ama seguras. 

Como a série aborda muito bem, Riri está disposta a cruzar muitas linhas para garantir seu objetivo e isso foi fonte de diversos conflitos online se ela era de fato uma heroína por tomar certas atitudes. Logo em seu primeiro episódio é mostrado Riri perdendo sua bolsa no MIT e por consequência o acesso à tecnologia disponível para ela alcançar a construção de uma armadura de ferro semelhante às apresentadas em Wakanda Para Sempre. Somos apresentados a mais da sua origem e às verdadeiras motivações da mesma desejar conseguir proteger aqueles a quem ama, traumas prévios a sua primeira aparição no MCU impactam diretamente as motivações, anseios e obstáculos verdadeiros da personagem no seu seriado. Sua vontade paralela àquela do Homem de Ferro, responsável por criar Ultron por desejar colocar o mundo protegido por uma armadura, mas num nível pessoal muito melhor explorado pela narrativa da obra lançada pelo Disney+ em Junho deste ano.

Se aliando a um grupo criminoso para conseguir dinheiro e portanto conseguir montar a sua armadura, Riri se envolve não apenas no mundo do crime mas acaba por se deparar com forças para além de sua compreensão. Nessa jornada, ela tem a presença e ajuda de sua própria inteligência artificial, mas diferente das demais apresentadas no universo até agora a mesma utiliza das memórias da protagonista para ganhar forma e adota a aparência e personalidade de Natalie (Lyric Ross), melhor amiga de Riri morta em um tiroteio no bairro delas. O nome da inteligência artificial? N.A.T.A.L.I.E. Criativo, imaginativo, original. O interessante é a complexidade deste arco, pois a personagem de Dominique Thorne não lidou com seu luto, então encarar a razão dele existir e lidar com essa I.A. é algo muito bom de se acompanhar. A humanidade por trás de todos os episódios e os personagens nesta série são exatamente o maior ponto positivo da mesma. Além de tudo é uma forma criativa de abordar as Inteligências Artificiais dentro do universo e o luto em si da personagem.

A diretora dos três primeiros episódios é Samantha Bailey, cuja ascensão de sua carreira se deu através de uma websérie produzida por ela mesma chamada You’re So Talented (2015 -) (vencedora de um Prêmio Gotham em 2025). Suas experiências na direção e produção incluem créditos em obras focadas na experiência negra e a identidade queer como Brown Girls (2017 -), o curta metragem Masculine/Masculine (2018) e episódios de Grown-ish (2018 – 2024) e Cara Gente Branca (Dear White People, 2017 – 2021). Utilizando a sua experiência sobre as vivências de personagens negros foi essencial para a criação da identidade estética e também narrativa dos primeiros episódios lançados na série, também recheados com cenas de ação carregadas de tensão. Está é a melhor parte de Coração de Ferro, o show vai muito além de uma jovem numa armadura de ferro lutando contra seus oponentes, envolve conflitos internos e externos palpáveis e capazes de humanizar sua protagonista sem a colocar nem de perto em um pedestal. Afinal, Riri Williams é uma jovem e se tem algo que jovens fazem é cometer erros, pelas mais diversas razões possíveis. Os primeiros episódios da série são recheados de erros cometidos pela protagonista, assim como a mesma tendo de lidar com os erros ao longo da série no geral.

Ao final do terceiro episódio, lançado no dia de estreia com os dois primeiros, Riri toma uma decisão e termina por escolher deixar um inimigo seu morrer. Isso faz de Riri uma anti-heroína? Uma vilã? Ou isso apenas acompanha uma narrativa complexa de uma jovem heroína em meio a um mundo repleto de problemas, mundo esse não inteiramente compreendido por ela?

Enquanto existe uma diferença muito evidente entre os conceitos de matar ou não para heróis e anti-heróis, ainda não isenta o fato de a grande parte dos heróis do MCU já terem sido sim responsáveis diretamente por mortes. Como os mesmos lidam com as consequências destas ações é exatamente o que divide heróis e anti-heróis, pois Deadpool, Eco e Justiceiro possuem outra lógica para suas ações heroicas que assume o ato de matar como necessário na maioria das vezes – portanto anti-heróis. Se trata não apenas de motivações ou o ato em si, mas todas as nuances na psique dos personagens e como os mesmos lidam com estas consequências. Inclusive os heróis da primeira fase não possuem essas nuances, suas narrativas não tratam a morte de soldados, terroristas, gigantes de gelo como assassinato por “capangas” representarem em suas obras seres sub-humamos. Riri Williams não é uma heroína convencional para o MCU, mas sua trajetória e suas escolhas ruins ao longo da série são exatamente o que a tornam uma personagem tão interessante.

Os últimos três episódios do seriado, lançados na semana seguinte a sua estreia, mergulham um pouco mais no conflito entre magia e tecnologia enquanto continuam a explorar as consequências das escolhas de Riri. Sejam as consequências na sua vida, na vida de outras pessoas ou em sua própria jornada ética consigo mesma questionando até onde ela é capaz de ir por sua jornada – mesmo julgando estar no caminho de fazer tudo por um bem maior. Temos a apresentação da personagem Zelma Stanton (Regan Aliyah), uma jovem feiticeira com conhecimento para auxiliar Riri na sua jornada contra o personagem de Anthony Ramos, Parker Robins – O Capuz. Bem, mesmo estando presente na obra desde seus primeiros episódios o personagem de Ramos falhou em narrativamente se sustentar quanto um vilão a altura da jornada de Riri, ao final da temporada a razão disso fica mais evidente, mostrando o mesmo ser mais uma vítima e peça num jogo do que um vilão. Já Selma foi capaz de roubar a cena com seus carisma, personalidade e química com o resto do elenco, com uma personagem bem humorada e bem real em meio a um mundo de magia das trevas e tecnologia avançada.

A diretora Angela Barnes, responsável pela última metade da temporada, assinou a direção de episódios de séries como Atlanta (2016 – 2022) e Caçadoras de Recompensas (Teenage Bounty Hunters, 2020), e ambas as obras possuem um diálogo direto com o seriado estrelado por Dominique Thorne. Seus episódios, embora recheados de ação, ecoam mais sobre os conflitos mais pessoais dos personagens, sejam eles internos ou externos, combinando muito com o caminho traçado pela minissérie da Marvel em seus primeiros episódios. É ela a responsável por dirigir o episódio onde um grande vilão dos quadrinhos, cuja apresentação ao UCM é aguardada desde o começo da fase 4 e ela faz de maneira única, sem ser óbvia. A trajetória de Riri para se tornar uma heroína não chegou ao fim, assim como seu hábito de tomar más escolhas para o bem daqueles que ela ama. É algo muito óbvio ao longo do seriado, como a protagonista vai fazendo suas escolhas erradas responsáveis por trazerem consequências extremas, sejam elas mais imediatas ou a longo prazo.

Diferente das demais séries em live action do Universo Marvel lançadas após o final da Fase 3, Coração de Ferro teve o lançamento de todos os seus episódios em apenas duas semanas. Algo semelhante aconteceu com o seriado Eco (2024), ambos tendo protagonistas mulheres não brancas, assim como elenco majoritariamente composto por pessoas negras ou nativo americanas (que também contou com a direção da diretora trans e nativa americana Sidney Freeland). Não é por coincidência o lançamento das duas terem sido diferentes das demais obras, assim como ambas contarem com uma divulgação muito mais fraca que as demais. Coração de Ferro teve seu trailer lançado na mesma época do trailer de Superman (2025) do James Gunn, além de ter sofrido com críticas negativas do público mesmo antes de seu lançamento (um ataque conhecido como ‘review bomb’, ou bomba de críticas). Para além do machismo e racismo (além de LGBTQIAPN+ fobia pela presença de Shea Colee como parte do grupo criminoso do Capuz), o seriado foi consistente, interessante e único, com uma proposta de conflito entre magia e tecnologia, certo e errado, extremamente agradável.

É de se esperar mais da Coração de Ferro no futuro do Universo Marvel, mas o melhor seria se a empresa enxergasse os benefícios de dar continuidade as suas obras sem serem obrigatoriamente peças em um quebra-cabeças gigante. Nem todos que assistiram Coração de Ferro desejam ver outras obras da Marvel e a empresa poderia se beneficiar de explorar o público para além daqueles cuja única preocupação é como cada série vai afetar a atual ou próxima saga.


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