Este texto contém pequenos spoilers de A Vida de Chuck
A Vida de Chuck é um conto incluído no livro Com Sangue, de Stephen King. Os direitos da história foram adquiridos por Darren Aronofsky, porém em maio de 2023, os direitos foram para Mike Flanagan, o já renomado diretor de terror da Netflix. Aliás, essa não é sua primeira adaptação de Stephen King. Flanagan adaptou Jogo Perigoso (Gerald’s Game, 2017) e Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019), ambos aclamados por público e crítica, segundo o Rotten Tomatoes. Aqui, assim como nas adaptações anteriores de King, Mike Flanagan adaptou a história para o cinema, além de dirigir, roteirizar e editar.
O conto
Antes de escrever essa crítica, eu quis ler o conto que originou o filme. E sim, eu li depois de ver o filme, mas ainda assim, acredito que valeu a pena. Sinto que eu não teria a dimensão completa do que é King e o que é Flanagan se eu não tivesse lido, e acho que saber isso é crucial.
O conto, em si, é bem escrito, embora haja problemas. Sinto que Stephen King ainda escreve nos anos 80, apesar deste conto ter sido publicado em 2020. É algo levemente datado, mas que apenas atrapalha a leitura em poucas ocasiões, mas quando atrapalha, incomoda. Digo que incomoda porque King é por vezes machista, suas personagens femininas, quando mencionadas, são ou sexualizadas ou sem profundidade, deixando todo o conteúdo intelectual da história na “boca” de personagens masculinas, até quando isso não faz tanto sentido assim (como uma esposa não estar ao lado do marido em seu leito de morte, por exemplo, e que o filho do casal precise descobrir coisas de seu pai através de uma conversa com SEU TIO… juro).
Apesar desse problema, a história é agradável e fiquei feliz em descobrir que várias decisões que amei no filme são, na verdade, de King, como o fato de dividir a história em três atos, mas com um twist lindo que não só faz total sentido, como cria a profundidade que a história necessita. O conto é fácil de ler e, mesmo tendo lido pouco de Stephen King na minha vida, creio que seja uma marca do autor, o que torna o texto agradável, fluido e divertido. Quando vi o filme, fiquei um tanto decepcionada com o final e logo a fama de King não saber escrever finais me veio à mente. Não posso afirmar (afinal, como disse, li pouco de Stephen King), mas certamente o final do conto é menos impactante e muito mais óbvio do que no cinema. Acho que essa é a deixa perfeita para eu falar sobre a adaptação em si.
A adaptação. Criando um filme
Antes de tudo, só gostaria de expressar minha felicidade nesse texto sobre o fato desta adaptação não ter ficado nas mãos de Darren Aronofsky. Não que eu odeie sua figura ou suas produções, mas quem me conhece há algum tempo, sabe sobre meu profundo desprezo por Mãe! (Mother!, 2017), filme que acho pretensioso e um erro de diversas formas. É de se alegrar, portanto, que uma história tão delicada quanto A Vida de Chuck não tenha sido adaptada por ele. Desculpa, eu precisava colocar isso no texto. Sim, era uma necessidade.
E então chegamos em Mike Flanagan, diretor que me conquistou imediatamente desde que assisti A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House, 2018). O que é cômico, visto que terror não é, nem de perto, meu gênero preferido. Entretanto, assisti não só “Residência Hill”, como A Maldição da Mansão Bly (The Haunting of Bly Manor, 2020) e Missa da Meia-Noite (2021) três vezes (e sinto que esse número subirá no futuro).
Seguindo a deixa do tópico anterior, vamos falar sobre como Mike Flanagan MELHORA um conto já muito bom. Ao pegar conceitos rasos e expandi-los ou passagens curtas e aprofundá-las, o diretor transforma o conto já interessante em algo profundo, com muito mais significado e muito mais coeso. As escolhas diferentes que Mike faz ao decorrer da história, torna A Vida de Chuck (The Life of Chuck, 2024) uma obra-prima. São uma série de boas decisões: Confiar no espectador é talvez a mais importante delas, pois, o que Stephen King explica em diálogos expositivos demais, Flanagan deixa a história mais enigmática, mais misteriosa. Não propriamente um suspense, muito menos um terror, essa sequer é a proposta de King também, mas certamente isso afeta profundamente em como a revelação final fica mais significativa, impactante. Além disso, Mike também confia no VISUAL do “audiovisual” para contar a história. Claro, em um texto, é muito difícil criar imagens, mas não impossível. King, por sua vez, acaba, de novo, expondo em diálogos algo que poderia ser mostrado ao leitor. E como Flanagan ACERTOU nesse visual. Destaque enorme aqui para o design de produção que cria um mundo crível e vivo, destaque também para direção de arte que, dentre seus inúmeros acertos, veste as personagens de maneira precisa, equilibrando o realismo com um figurino exagerado, como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro. Outro destaque fica por conta dos efeitos visuais do filme, que cumprem seu papel, mas brilham exatamente quando o roteiro pede.
Em termos de roteiro e adaptação, Mike Flanagan literalmente TIROU todas as passagens misóginas do conto, para meu alívio. Ele não só tira tais partes, como adiciona a devida importância a essas mulheres, antes esquecidas e sem tempero por King. Igualmente, é um deleite perceber como Mike Flanagan retira partes desnecessárias, mas também adiciona suas próprias. Ao adicionar, por exemplo, trechos de Carl Sagan sobre a grandiosidade do Universo, Mike parece que entende mais da história do que o próprio Stephen King, que parece passar apressado por certos trechos. Trechos que o diretor, por sua vez, eleva, modifica, aprofunda, adapta, faz ser maior. Enorme. É uma adaptação muito delicada, que claramente nota-se não só um intenso amor por essa história por parte de Mike Flanagan, como uma sutileza inigualável. Outra decisão inteligente do roteirista é dar menos importância a certos fatos que, apesar de importantes, só são revelados no momento certo, podendo assim, ter o efeito dramático mais preciso e acertado.
O elenco em si é um show à parte. Eu estou com uma dificuldade enorme em pinçar poucos nomes, então peço perdão antecipadamente pela enorme lista a seguir. A começar com Chiwetel Ejiofor, Karen Gillan, Carl Lumbly, Mark Hamill e Matthew Lillard, nomes já renomados em Hollywood que, aqui, demonstram exatamente o porquê são facilmente reconhecidos por qualquer um que goste um pouquinho de cinema. Mesmo os que estão em papéis menores, caso de Lumbly e Lillard, ambos brilham em momentos tão pequenos que acredito não ultrapassarem os 10 minutos de tela. Os já recorrentes em trabalhos de Flanagan, Rahul Kohli, Kate Siegel (esposa do diretor), Samantha Sloyan e a pequena Violet McGraw parecem já confortáveis em trabalhar com o diretor, a ponto que todas essas participações se tornem tão necessárias que parece que Flanagan criou tais papéis exatamente para eles. Destaque para a também recorrente Annalise Basso que protagoniza uma cena tão importante e tão significativa que merece um destaque só dela. Impossível não mencionar aqui David Dastmalchian que não tendo mais do que 4 minutos de tela, me fez chorar. David, que escolhe fazer personagens complexos, entende em profundidade o que Flanagan pediu ao dar ênfase nesse personagem, que mal aparece, tornando a cena memorável. E claro, o destaque verdadeiro fica com “os Chucks”. O novato Benjamin Pajak rouba a cena em todos os momentos que está presente, fazendo o Chuck mais novo ser maravilhosamente adorável. Importante destacar aqui que Flanagan se aproveita muito melhor dessa fase da vida de “Chuck” do que King, o que torna a obra muito mais completa. O “Chuck” na fase adolescente fica com o já experiente aos 18 anos, Jacob Tremblay, que prova mais uma vez que possui um dom raro, onde a atuação corre em suas veias. Já a fase adulta de “Chuck”, fica por conta do inigualável Tom Hiddleston, em um dos papéis que eu mais amei vê-lo fazer. Hiddleston aproveita todo o tempo de tela que possui para entregar uma das personagens mais completas de um filme. A delicadeza de Hiddleston encontra a delicadeza de Flanagan e, juntos, eles produzem fogos de artifício em formato de cinema.
Conclusão
Eu já esperava amar a nova produção de Flanagan, fiz questão de assistir no cinema justamente porque sabia do impacto que assistir um filme do diretor em tela grande (algo que nunca havia feito antes) teria em mim. Mike Flanagan prova, mais uma vez, porque vem se tornado um dos maiores nomes da indústria do cinema, entregando obras impecáveis e A Vida de Chuck não é diferente. Eu saí da sala renovada, com um ar de calmaria e esperança. O filme é certamente um ponto de luz em tempos sombrios que vivemos atualmente. Ainda bem que o cinema de Mike Flanagan existe.
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Cineasta finalmente formada, nascida e criada em São Paulo, infelizmente. Quando empregada, atua como fotógrafa. Prefere maratonar séries do que dormir, cai muito fácil em provocações, mas tem o riso frouxo e gosta de abraços.